Como mensageiro dos "deuses", Exu tudo sabe; não há segredos para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu não pode ter preferência por esse ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os outros "deuses" é seu caráter de transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança. Não é, pois, de se estranhar que seja temido e considerado perigoso, posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites. Assim, tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu. Exu carrega qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável para todos que estão iludidos com a personalidade de uma ùnica existência e sua materialidade, com o plano concreto, com a vida finita de uma encarnação. Então, equivocadamente, se imagina ser Exu dotado de caráter instável, duvidoso, interesseiro, turbulento e arrivista.
Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher podia se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam, que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara, e associado ao mal, ao demônio, pelo clero sacerdotal católico obrigado ao celibato como se o sexo não fosse sagrado em sua funções reprodutoras.
Isso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de orixá difícil e perigoso, que os cristãos, notadamente em decorrência dos católicos, erroneamente, reconheceram como demoníaca. Quando a religião dos orixás veio a ser praticada no Brasil do século xix por negros que eram também católicos, todo o sistema teológico de pensar o mundo em termos do bem e do mal deu um novo formato à religião africana, no qual Exu veio a desempenhar outro papel. A visão “cristã” dos orixás confundiu Oxalá com Jesus, Iemanjá com Nossa Senhora, e outros santos católico com os demais orixás. Para completar o panteão afro-católico, sobrou para Exu ser confundido com o Diabo. Foi, portanto, o sincretismo católico que deu a Exu a identidade de um demônio. Mas essa identidade destorcida sempre foi católica e sincrética. Não tem nada de africana e a sua originalidade cósmica se encontra completamente distorcida e erroneamente humanizada.
Pensam os que se acostumaram a ver os orixás numa perspectiva imposta pelo catolicismo e hoje reforçada pelo evangelismo - o que nada tem haver com os princípios libertadores do evangelho à luz do cosmo deixados por Jesus-, que Exu deve ser homenageado em primeiro lugar para não provocar confusão, para não bagunçar a cerimônia, como se ele fosse um simples e oportunista arruaceiro. É uma visão bem simplista e demasiadamente falsa. Ora, Exu é antes de tudo movimento e nada pode acontecer sem ele, nem mesmo um pensamento sem que haja movimento e deslocamento vibratório. Nada pode, portanto, se dar sem a interferência de Exu. Por isso ele é sempre o primeiro a ser invocado: é preciso permitir o movimento para que o evento, seja ele qual for, se realize, como por exemplo deslocar a energia de determinado orixá com um fim específico e benfeitor a um indivíduo ou coletividade, ou, em sentido inverso, retirar-se a energia deletéria de um consulente e leva-lá para desintegrar-se junto a determinados campos de forças específicos de magnetismo telúrico da natureza.
O movimento cósmico de Exu não é dotado de moralidade, nem poderia ser, pois se assim fosse o mundo ficaria paralisado, eis que a moral é relativizada pelo atemporal, pelas diversas èpocas existenciais da face do orbe. A vida é um pulsar permanente, e em cada passo, em cada avanço ou retrocesso, em cada mudança, enfim, Exu está presente. Tudo começa por ele; por isso ele é e será sempre o primeiro, desde que fomos criados como espíritos pelo Criador.
O movimento cósmico de Exu não é dotado de moralidade, nem poderia ser, pois se assim fosse o mundo ficaria paralisado, eis que a moral é relativizada pelo atemporal, pelas diversas èpocas existenciais da face do orbe. A vida é um pulsar permanente, e em cada passo, em cada avanço ou retrocesso, em cada mudança, enfim, Exu está presente. Tudo começa por ele; por isso ele é e será sempre o primeiro, desde que fomos criados como espíritos pelo Criador.
*Bibliografia usada na pesquisa do artigo:
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. Petrópolis, Vozes, 1976.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 5ª edição. Salvador, Corrupio, 1997.