Falar de pombogiras (ou pomba-giras ou ainda bombogiras) é uma tarefa complexa – talvez mais complexa que falar dos exus, demonizados pela tradição católica da nossa colonização. Essa complexidade ocorre porque além de serem demonizadas tanto quanto os exus – haja vista que as pombogiras são também classificadas como “exus femininos”, não estando, portanto, isentas desse sincretismo com o diabo bíblico – mas também porque a identidade brasileira é formada e calcada não apenas em valores religiosos, existe uma ideologia (ainda que sustentada pela religião européia) que configura a nossa sociedade, e o machismo é um de seus traços marcantes. Assim, se as entidades que trabalham na Umbanda (e nos cultos afro-ameríndios de uma forma geral) já são estigmatizadas, mas quando se trata de entidades femininas, esse estigma só tende a aumentar e ganhar um caráter ainda mais marginalizado, pois além de ser um ícone de uma crença já rotulada negativamente, ainda são mulheres e como tais, sob a ótica e a tradição cristã-européia, deveriam comportar-se de forma exemplar dentro dos padrões estabelecidos há tantos séculos.
Assim, não demorou para que se associasse a figura da Pombogira não só ao diabo, mas também à prostituta. Contribuiu para essa associação a maneira sensual como essas entidades se manifestam quando estão em terra. Como já foi dito, pelas tradições históricas, espera-se um comportamento exemplar (e por que não dizer, assexuado?) das mulheres. Sob essa ótica, a Pombogira é a entidade de Umbanda mais transgressora que se manifesta, mais subversiva até que o exu masculino, já que do homem se espera o caráter viril, impetuoso e ousado, mesmo que demonizado. Dessa forma, no imaginário popular, a Pombogira, além de ser o demônio, é também a prostituta, a mulher sem pudor, que em vida não tinha limites sexuais e que, agora, no mundo espiritual continua tendo um comportamento promíscuo.
No entanto, essa é uma visão estereotipada das Pombogiras, uma visão repleta de senso comum e até mesmo de folclore. É preciso entender Pombogira antes de falar dela, e essa não é uma tarefa fácil e requer responsabilidade.
Tanto quanto os caboclos ou pretos-velhos, as pombogiras são incansáveis trabalhadoras do Astral e, assim como os exus, são pouco compreendidas, muitas vezes até pelos próprios seguidores das religiões afro-ameríndias, que no lugar de desmistificar a imagem diabólica e promíscua dada a essas entidades, acabam por reforçá-la, através da propagação do senso comum, fruto da falta de compreensão da própria crença que professam.
Segundo essas religiões, prevalece no universo o princípio da dualidade – não confundir com maniqueísmo – assim, o bem e o mal, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo, a luz e as trevas fazem parte do mecanismo que movimenta o mundo. Dessa forma, a Pombogira é um elemento importante para esse funcionamento, já que ativa o lado feminino espiritual, o que faz das religiões que cultuam essa entidade algo ímpar, pois é sabido que a maioria dos credos prima pelo masculino, excluindo de forma despótica a figura feminina, ou colocando-a em condição subalterna.
Mais uma vez, portanto a Pombogira aparece como uma figura subversiva pelo simples fato de manter evidente a sua condição feminina. Na Umbanda e nos cultos similares, a Pombogira, cujo arquétipo prima pela feminilidade e sensualidade nela contida, não é uma entidade de segundo escalão ou subserviente. É tão atuante e senhora de si como as demais e, também nesse aspecto, pela própria subversão inerente a essa categoria de espíritos, a Umbanda se torna única e estende esse caráter ao mesmo tempo subversivo e libertário às ações de seus seguidores. Um claro exemplo disso é o fato de existirem sacerdotisas na Umbanda – em grande quantidade, em detrimento de outras religiões, onde a liderança sacerdotal é predominantemente masculina.
Afirmar categoricamente que existe uma relação entre a Pombogira e esse fato seria algo arriscado demais, mas certamente a crença no poder dessas entidades faz com que os seus adeptos (homens ou mulheres) passem a enxergar a figura feminina de forma menos arraigada nos princípios machistas da sociedade, permitindo assim que as mulheres assumam a liderança do culto e se tornem respeitadas. Não são poucos os homens, seguidores desses cultos, que reconhecem e respeitam a autoridade de suas sacerdotisas ou mães-de-santo. A Umbanda vence as barreiras de gênero e o culto às Pombogiras certamente contribui muito para isso.
Entretanto (e paradoxalmente), mesmo entre os seguidores desses cultos ainda existe certa incompreensão da figura da Pombogira, como já dito anteriormente. Muitos ainda propagam a falsa idéia da mulher sensual e demonizada. Para reforçar essa crença, soma-se o fato de que essas entidades são muito procuradas – e eficientes – para a solução de casos materiais e especialmente amorosos. O fato de estarem predispostas a auxiliar os aflitos no amor parece dar a elas um status ainda mais estigmatizado, mais ligado à figura da mulher pervertida, dada a aventuras sentimentais. Porém, uma análise fria pode nos dar outra visão: a de que todos os aflitos têm direito a auxílio espiritual, independente da ordem do seu problema – seja afetivo, material, financeiro ou familiar.
Mais uma vez as raízes judaico-cristãs nos levam a um julgamento de valor. Perpetuou-se, ao longo dos séculos, a crença de que certos problemas não podem (ou não devem) ser levados à esfera divina. Em outras palavras, pessoas com problemas relacionados ao amor e à sexualidade não são dignas de ser ouvidas e auxiliadas pelas forças divinas. Seria uma espécie de profanação ou banalização do divino levar esse tipo de problema à sua apreciação, mais eis que novamente a Pombogira surge como figura subversiva no cenário espiritual, sempre disposta a atender àqueles que sofrem questões sexuais ou amorosas.
Demonizadas ou não, compreendidas ou não, essa qualidade de espírito desempenha importante papel no funcionamento das religiões afro-ameríndias. Sua função não é apenas espiritual, mas é também social e ideológica, pois ao socorrer os desvalidos e aflitos no amor coloca a todos – homens e mulheres, ricos e pobres – em condições igualitárias, e também porque dão aos seus cultos um caráter libertário, tanto no que se refere à igualdade de gênero quanto à própria liberação sexual, pois conseguem desassociar o sexo do pecado, do profano e do intratável. São entidades que acima das questões amorosas, primam pela liberdade do ser humano e pelo respeito às suas escolhas.
Fonte:
Assim, não demorou para que se associasse a figura da Pombogira não só ao diabo, mas também à prostituta. Contribuiu para essa associação a maneira sensual como essas entidades se manifestam quando estão em terra. Como já foi dito, pelas tradições históricas, espera-se um comportamento exemplar (e por que não dizer, assexuado?) das mulheres. Sob essa ótica, a Pombogira é a entidade de Umbanda mais transgressora que se manifesta, mais subversiva até que o exu masculino, já que do homem se espera o caráter viril, impetuoso e ousado, mesmo que demonizado. Dessa forma, no imaginário popular, a Pombogira, além de ser o demônio, é também a prostituta, a mulher sem pudor, que em vida não tinha limites sexuais e que, agora, no mundo espiritual continua tendo um comportamento promíscuo.
No entanto, essa é uma visão estereotipada das Pombogiras, uma visão repleta de senso comum e até mesmo de folclore. É preciso entender Pombogira antes de falar dela, e essa não é uma tarefa fácil e requer responsabilidade.
Tanto quanto os caboclos ou pretos-velhos, as pombogiras são incansáveis trabalhadoras do Astral e, assim como os exus, são pouco compreendidas, muitas vezes até pelos próprios seguidores das religiões afro-ameríndias, que no lugar de desmistificar a imagem diabólica e promíscua dada a essas entidades, acabam por reforçá-la, através da propagação do senso comum, fruto da falta de compreensão da própria crença que professam.
Segundo essas religiões, prevalece no universo o princípio da dualidade – não confundir com maniqueísmo – assim, o bem e o mal, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo, a luz e as trevas fazem parte do mecanismo que movimenta o mundo. Dessa forma, a Pombogira é um elemento importante para esse funcionamento, já que ativa o lado feminino espiritual, o que faz das religiões que cultuam essa entidade algo ímpar, pois é sabido que a maioria dos credos prima pelo masculino, excluindo de forma despótica a figura feminina, ou colocando-a em condição subalterna.
Mais uma vez, portanto a Pombogira aparece como uma figura subversiva pelo simples fato de manter evidente a sua condição feminina. Na Umbanda e nos cultos similares, a Pombogira, cujo arquétipo prima pela feminilidade e sensualidade nela contida, não é uma entidade de segundo escalão ou subserviente. É tão atuante e senhora de si como as demais e, também nesse aspecto, pela própria subversão inerente a essa categoria de espíritos, a Umbanda se torna única e estende esse caráter ao mesmo tempo subversivo e libertário às ações de seus seguidores. Um claro exemplo disso é o fato de existirem sacerdotisas na Umbanda – em grande quantidade, em detrimento de outras religiões, onde a liderança sacerdotal é predominantemente masculina.
Afirmar categoricamente que existe uma relação entre a Pombogira e esse fato seria algo arriscado demais, mas certamente a crença no poder dessas entidades faz com que os seus adeptos (homens ou mulheres) passem a enxergar a figura feminina de forma menos arraigada nos princípios machistas da sociedade, permitindo assim que as mulheres assumam a liderança do culto e se tornem respeitadas. Não são poucos os homens, seguidores desses cultos, que reconhecem e respeitam a autoridade de suas sacerdotisas ou mães-de-santo. A Umbanda vence as barreiras de gênero e o culto às Pombogiras certamente contribui muito para isso.
Entretanto (e paradoxalmente), mesmo entre os seguidores desses cultos ainda existe certa incompreensão da figura da Pombogira, como já dito anteriormente. Muitos ainda propagam a falsa idéia da mulher sensual e demonizada. Para reforçar essa crença, soma-se o fato de que essas entidades são muito procuradas – e eficientes – para a solução de casos materiais e especialmente amorosos. O fato de estarem predispostas a auxiliar os aflitos no amor parece dar a elas um status ainda mais estigmatizado, mais ligado à figura da mulher pervertida, dada a aventuras sentimentais. Porém, uma análise fria pode nos dar outra visão: a de que todos os aflitos têm direito a auxílio espiritual, independente da ordem do seu problema – seja afetivo, material, financeiro ou familiar.
Mais uma vez as raízes judaico-cristãs nos levam a um julgamento de valor. Perpetuou-se, ao longo dos séculos, a crença de que certos problemas não podem (ou não devem) ser levados à esfera divina. Em outras palavras, pessoas com problemas relacionados ao amor e à sexualidade não são dignas de ser ouvidas e auxiliadas pelas forças divinas. Seria uma espécie de profanação ou banalização do divino levar esse tipo de problema à sua apreciação, mais eis que novamente a Pombogira surge como figura subversiva no cenário espiritual, sempre disposta a atender àqueles que sofrem questões sexuais ou amorosas.
Demonizadas ou não, compreendidas ou não, essa qualidade de espírito desempenha importante papel no funcionamento das religiões afro-ameríndias. Sua função não é apenas espiritual, mas é também social e ideológica, pois ao socorrer os desvalidos e aflitos no amor coloca a todos – homens e mulheres, ricos e pobres – em condições igualitárias, e também porque dão aos seus cultos um caráter libertário, tanto no que se refere à igualdade de gênero quanto à própria liberação sexual, pois conseguem desassociar o sexo do pecado, do profano e do intratável. São entidades que acima das questões amorosas, primam pela liberdade do ser humano e pelo respeito às suas escolhas.
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