A dança dos
caboclos
Uma síntese
do Brasil segundo os terreiros afro-brasileiros
Reginaldo
Prandi
Universidade
de São Paulo
rprandi@usp.br
Artigo completo
Aprendemos na escola que a
população brasileira foi formada pelos europeus colonizadores, que se mesclaram
com os indígenas que aqui já viviam antes da chegada dos portugueses e com os
africanos trazidos pelo escravismo. Somos ao mesmo tempo brancos, índios e
negros. São essas as nossas raízes, às quais mais tarde vieram se juntar povos
do Oriente Próximo, do Extremo Oriente e de outras partes do mundo. Somos um
povo mestiço, com uma cultura mestiça, mas o assumir dessa identidade só veio a
ganhar alguma legitimidade por volta dos anos 20 do século passado, época,
inclusive, em que se formaram duas importantes marcas dessa ascendência: o
samba, no universo da música popular brasileira, e a umbanda, síntese das
diversidade religiosa afro-brasileira.
Negros e índios: impossível pensar o Brasil sem essas duas origens. Suas marcas estão na constituição física do brasileiro e também na sua cultura, sobressaindo-se a música e a religião, mas incluindo também dimensões como língua, culinária, estética, valores sociais e estruturas mentais. Mas é nas religiões afro-brasileiras que estão registradas a presença decisiva e a diversidade da contribuição negra.
Negros e índios: impossível pensar o Brasil sem essas duas origens. Suas marcas estão na constituição física do brasileiro e também na sua cultura, sobressaindo-se a música e a religião, mas incluindo também dimensões como língua, culinária, estética, valores sociais e estruturas mentais. Mas é nas religiões afro-brasileiras que estão registradas a presença decisiva e a diversidade da contribuição negra.
Durante quase quatro séculos, negros africanos foram caçados
e levados ao Brasil para trabalhar como escravos. Separados para sempre de suas
famílias, de seu povo, do seu solo (de fato apenas alguns poucos conseguiram retornar
depois da abolição da escravidão), os africanos foram aos poucos se adaptando a
uma nova língua, novos costumes, novo país. Foram se misturando com os brancos
europeus colonizadores e com os índios da terra, formando, como disse, a
população brasileira e sua cultura, como também aconteceu em outros países da
América. Muitos foram os povos africanos representados na formação brasileira,
os quais podem ser classificados em dois grandes grupos lingüísticos: os
sudaneses e os bantos (Prandi, 2000).
São chamados sudaneses os povos situados nas regiões que hoje
vão da Etiópia ao Chade e do sul do Egito a Uganda, mais o norte da Tanzânia.
Seu subgrupo denominado sudanês central é formado por diversas etnias que
abasteceram de escravos o Brasil, sobretudo os povos localizados na região do
Golfo da Guiné, povos que no Brasil conhecemos pelos nomes genéricos de nagôs
ou iorubás (mas que compreendem vários grupos de língua e cultura iorubá de
diferentes cidades e regiões), os fons ou jejes (que congregam os daomenaos e
os mahis, entre outros), os haussás, famosos, mesmo na Bahia, por sua
civilização islamizada, e outros grupos que tiveram importância menor ou
nenhuma na formação de nossa cultura, como os grúncis, tapas, mandingos,
fantis, achantis e outros não significativos para nossa história. Para
enfatizar a especificidade de cada uma dessas culturas ou subculturas, talvez
seja suficiente lembrar que duas das cidades iorubás ocupam papel especial na
memória da cultura religiosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a cidade de
Xangô, e Queto, a cidade de Oxóssi, além de Abeocutá, centro de culto a
Iemanjá, e Ilexá, a capital da sub-etnia ijexá, de onde são provenientes os
cultos a Oxum e Logum Edé. O candomblé jeje-nagô da Bahia, o batuque do Rio
Grande do Sul, o tambor-de-mina do Maranhão e o xangô de Pernambuco são
heranças brasileiras desses povos.
Os bantos são povos da África Meridional que falam entre
setecentas e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul,
logo abaixo dos limites sudaneses, até o cabo da Boa Esperança, compreendendo
as terras que vão do Atlântico ao Índico. Os bantos trazidos para o Brasil eram
falantes de várias dessas línguas, sobressaindo-se, principalmente, os de
língua quicongo, falada no Congo, em Cabinda e em Angola; o quimbundo, falado
em Angola acima do rio Cuanza e ao redor de Luanda; e o umbundo, falada em
Angola, abaixo do rio Cuanza e na região de Benguela. A importância dos grupos
falantes dessas três línguas na formação do Brasil pode ser aferida pela quantidade
de termos que a língua portuguesa aqui falada deles recebeu (Castro, 2001),
além de outras contribuições nada desprezíveis, como a própria música popular
brasileira. Na esfera das religiões afro-brasileiras, a participação dos bantos
foi fundamental, pois é da religiosidade desses povos ou sob sua influência
decisiva que se formou no Brasil o candomblé de caboclo baiano e outras
variantes regionais de culto ao antepassado indígena, como o catimbó de
Pernambuco e da Paraíba, que mais tarde vieram a se reunir na formação da
umbanda e que também constituíram uma espécie de contrapartida brasileira ao
panteão das divindades africanas cultuadas nos candomblé, no xangô, no batuque
e no tambor-de-mina.
II
As diferentes etnias africanas chegaram ao Brasil em
distintos momentos, predominando os bantos até o século XVIII e depois os
sudaneses, sempre ao sabor da demanda por mão-de-obra escrava que variava de
região para região, de acordo com os diferentes ciclos econômicos de nossa
história, e do que se passava na África em termos do domínio colonial europeu e
das próprias guerras inter-tribais exploradas, evidentemente, pelas potências
coloniais envolvidas no tráfico de escravos. Nas últimas décadas do regime
escravista, os sudaneses iorubás eram preponderantes na população negra de
Salvador, a ponto de sua língua funcionar como uma espécie de língua geral para
todos os africanos ali residentes, inclusive bantos (Rodrigues, 1976). Nesse
período, a população negra, formada de escravos, negros libertos e seus descendentes,
conheceu melhores possibilidades de integração entre si, com maior liberdade de
movimento e maior capacidade de organização. O cativo já não estava preso ao
domicílio do senhor, trabalhava para clientes como escravo de ganho, e não
morava mais nas senzalas isoladas nas grandes plantações do interior, mas se
agregava em residências coletivas concentradas em bairros urbanos próximos de
seu mercado de trabalho. Foi quando se criou no Brasil, num momento em que
tradições e línguas estavam vivas em razão de chegada recente, o que talvez
seja a reconstituição cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de
preservar-se até os dias de hoje: a religião afro-brasileira.
Assim, em diversas cidades brasileiras da segunda metade do
século XIX, surgiram grupos organizados que recriavam no Brasil cultos
religiosos que reproduziam não somente a religião africana, mas também outros
aspectos da sua cultura na África. Nascia a religião afro-brasileira chamada
candomblé, primeiro na Bahia e depois pelo país afora, tendo também recebido,
como já disse, nomes locais, como xangô em Pernambuco, tambor-de-mina no
Maranhão, batuque no Rio Grande do Sul. Os principais criadores dessas
religiões foram negros das nações iorubás ou nagôs, especialmente os
provenientes de Oió, Lagos, Queto, Ijexá, Abeocutá e Iquiti, e os das nações
fons ou jejes, sobretudo os mahis e os daomeanos. Floresceram na Bahia, em
Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do Sul e, secundariamente, no Rio de
Janeiro.
III
Simultaneamente, por iniciativa de negros bantos, surgiu na
Bahia uma religião equivalente às dos jejes e nagôs, conhecida pelos nomes de
candomblé angola e candomblé congo. A modalidade banta lembra muito mais uma
transposição para as línguas e ritmos bantos das religiões sudanesas do que
propriamente cultos bantos da África Meridional, tanto em relação ao panteão de
divindades e seus mitos como no que respeita às cerimônias e aos procedimentos
iniciáticos, mas tem características que fizeram dela uma contribuição
essencial na formação do quadro religioso afro-brasileiro: o culto ao caboclo.
Ora, os bantos tinham chegado muito tempo antes dos iorubás e dos fons, estavam
bastante adaptados aos costumes predominantes no país, falavam a língua
portuguesa e tinham assimilado o catolicismo. Mas, num país de escravos, ainda
eram considerados africanos, como todos os negros e mestiços, e seu lugar na
sociedade, por isso, era à margem; sua identidade ainda era africana. Em outras
palavras, eram contraditoriamente brasileiros e africanos ao mesmo tempo. Como
africanos meridionais que eram, suas remanescentes tradições os orientavam no
sentido de cultuar os antepassados, antepassados que na África banta estavam
fixados na terra, de modo que cada aldeia tinha seus próprios ancestrais como
parte integrante daquele território geográfico e que usualmente não se
deslocavam para outros lugares. Como brasileiros que também já eram, tinham
consciência de uma ancestralidade genuinamente brasileira, o índio. Da
necessidade de cultuar o ancestral e do sentimento de que havia uma
ancestralidade territorial própria do novo solo que habitavam, os bantos e seus
descendentes criaram o candomblé de caboclo, que celebrava espíritos dos índios
ancestrais (Santos, 1995; Prandi, Vallado e Souza, 2001).
Apesar de os bantos estarem no Brasil havia muito mais tempo,
indícios históricos nos levam a crer que é tardia a formação de um candomblé
banto de culto a divindades africanas, o qual teria surgido apenas quando os
candomblés de orixá e de voduns já estavam organizados ou se organizando.
Embora todos os negros e mestiços fossem considerados como iguais, na medida em
que ocupavam na sociedade branca posição oficialmente subalterna e
marginalizada, as identidades étnicas estavam preservadas nas irmandades
religiosas católicas, que reuniam em igrejas e associações específicas os
diferentes grupos africanos étnico-linguístico. Pois quando nagôs e jejes
reunidos nas irmandades católicas (Silveira, 2000) refizeram no Brasil suas
religiões africanas de origem, os bantos os acompanham. Pelas razões que já
apontei, sua religião de inquices (divindades ancestrais bantas) teve uma
reconstituição muito mais problemática, obrigando-se a empréstimos sudaneses
nos planos do panteão, dos ritos e dos mitos.
No campo religioso foi, portanto, dupla a contribuição banta
originada na Bahia: o candomblé de caboclo e o candomblé de inquices denominado
angola e congo — duas modalidades que se casariam num único complexo
afro-índio-brasileiro, povoando, a partir da década de 1960, praticamente o
Brasil todo de terreiros angola-congo-caboclo.
Não foi, entretanto, só na Bahia que surgiram os cultos das
entidades caboclas. Onde quer que tenham se formados grupos religiosos
organizados em torno de divindades africanas, podiam também ser reconhecidos
agrupamentos locais que buscavam refúgio na adoração de espíritos de humanos.
Esses cultos de espíritos ganharam, evidentemente, feições locais dependentes
de tradições míticas ali enraizadas, podendo estas serem mais acentuadamente
indígenas, de caráter mais marcado pelo universo cultural da escravidão, ou
mesmo mais próximas da mitologia ibérica transplantada para o Brasil colonial.
Em cada lugar surgiram cultos a espíritos de índios, de negros e de brancos.
Essa tendência foi muito reforçada pela chegada ao Brasil, no finalzinho do
século XIX, de uma religião européia de imediata e larga aceitação no Brasil: o
espiritismo kardecista.
Em cada uma dessas denominações religiosas caboclas, a
concepção dos espíritos cultuados também variou bastante. Na Bahia, por
exemplo, o caboclo é o índio que viveu num tempo mítico anterior à chegada do
homem branco, mas um índio que conheceu a religião católica e se afeiçoou a
Jesus, a Maria e a outros santos; um índio que viveu e morreu neste país — este
é o personagem principal do candomblé de caboclo, que, com o tempo agregou
outros tipos sociais, sobretudo os mestiços boiadeiros do sertão. A proximidade
com religiões indígenas é atestada pela presença ritual do tabaco, tabaco que,
antes da chegada das multinacionais do fumo, foi uma das grandes riquezas da
Bahia, antigo centro nacional da indústria fumageira e importante produtor de
charutos. O charuto é até hoje um símbolo forte dos espíritos caboclos.
Na Paraíba e em Pernambuco, os espíritos, que ali se chamam
mestres podiam ser espíritos de índios, de brasileiros mestiços ou brancos,
entre os quais se destacavam antigos líderes da própria religião já falecidos,
os mestres, designação esta que acabou prevalecendo para designar todo e
qualquer espírito desencarnado. Essas manifestações também herdaram das
religiões indígenas o uso do tabaco, ali fumado com o cachimbo, usado nos ritos
curativos, além da ingestão cerimonial de uma beberagem mágica preparada com a
planta da jurema. Catimbó e jurema, os nomes pelos quais essa modalidade
religiosa é conhecida resultam desses dois elementos. Catimbó é provavelmente
uma deturpação da palavra cachimbo, e jurema, o nome da planta e da sua
beberagem sagrada (Bastide, 2001; Brandão e Rios, 2001).
Mais ao norte, no Maranhão e no Pará, os espíritos cultuados
são personagens lendários que um dia teriam vivido na Terra mas que, por alguma
razão, não conheceram a morte, tendo passado da vida terrena ao plano
espiritual por meio de algum encantamento: são os encantados (Ferretti, 1993 e
2001). Essa tradição de encantamento estava e está presente na cultura
ocidental (lembremo-nos nas histórias de fadas, com tantos príncipes e
princesas encantados), bem como na mitologia indígena. Os encantados são de
muitas origens: índios, africanos, mestiços, portugueses, turcos, ciganos etc.
Lendas portuguesas de encantaria, como a história do rei português dom
Sebastião, que desapareceu com sua caravela na batalha de Alcacequibir em 1578,
em luta contra os mouros, e que os portugueses acreditavam que um dia voltaria,
estão vivas nessa religião. A luta dos cristãos contra os mouros, tão cara ao
imaginário português, se transformou em mitologia religiosa, mas os turcos da
encantaria são agora aliados, não inimigos. Elementos da encantaria amazônica,
como as histórias de botos que viram gente e vice-versa; lendas de pássaros
fantásticos e peixes miraculosos, tudo isso foi compondo, ao longo do tempo, a
religião que se convencionou chamar encantaria ou encantaria do tambor-de-mina,
no Maranhão (Prandi e Souza, 2001), e sua vertente paraense (Leacock e Leacock,
1975).
Todas essas formas de cultos nascidas no Brasil, que podemos
genericamente chamar de religião dos encantados ou religião cabocla, são
religiões de transe. As entidades cultuadas se manifestam em transe no corpo de
devotos devidamente preparados para isso, tal como ocorre nos cultos dos
orixás, voduns e inquices. Como também se dá no conjunto todo das religiões
afro-brasileiras, todas desenvolvem ampla atividade mágico-curativa e de
aconselhamento oracular, todas elas são dançantes e sua música é acompanhada de
tambores e ritmos de origem africana, embora em modalidades como o catimbó a
dança tenha sido adotada mais tarde, nesta provavelmente por influência do
xangô. Diferentemente das religiões de orixás, voduns e inquices, as religiões
caboclas são, contudo, cantadas em português, o que confirma seu caráter
brasileiro e mestiço. Em nenhum momento fica escondida a mistura básica que
compõe cada uma delas: América, África e Europa, índio, negro e branco, são estas as fontes
indispensáveis da sua constituição. E todas elas são sincréticas com o
catolicismo, resultado de um momento histórico, o de sua formação no século
XIX, em que ninguém podia ser brasileiro se não fosse igualmente católico. O
catolicismo era a religião hegemônica, oficial e a única tolerada em solo
brasileiro.
Essas três manifestações afro-índio-brasileiras de culto dos
ancestrais da terra — candomblé de caboclo, catimbó-jurema e encantaria de mina
— não foram evidentemente as únicas. Muitas outras formas locais puderam ser
registradas nas diferentes partes do Brasil, tendo sido algumas delas
absorvidas por alguma das formas que lograram melhor se expandir e se
perpetuar, ou pela umbanda que se formou mais tarde (Senna, 2001). Outras
tantas, embora se mantendo com certa autonomia, ajudaram a compor cosmovisões e
panteões de religiões irmãs, como no caso da contribuição da pajelança
amazônica (Maués e Macambira, 2001) à encantaria de mina. Por todo lado,
diferentes expressões locais da religiosidade cabocla se encontraram, se
influenciaram, se fundiram e se espalharam.
Não se pode deixar de notar que essas práticas religiosas
acabaram por se justapor aos cultos das divindades africanas, estabelecendo com
eles relações de simbiose. O candomblé de caboclo acabou se tornando tributário
de candomblé angola e congo; a jurema passou a compor com o xangô, sobretudo o
de nação xambá; e a encantaria associou-se ao tambor-de-mina nagô. Os grupos
religiosos de culto a orixás e voduns mais comprometidos com raízes sudanesas
se mantiveram, pelo menos até um determinado momento e em algumas casas de
tradição mais ortodoxa, alheios ao culto caboclo. Era mesmo de se esperar que
assim fosse, pois o culto caboclo é, desde sua origem, de natureza mestiça.
IV
Por muito tempo tanto os candomblés de divindades africanas e
os cultos que giravam em torno de espíritos brasileiros e europeus (isto é, o
candomblé de caboclo, a encantaria de mina, o catimbó ou jurema dos mestres)
permaneceram mais ou menos confinados a seus locais de origem. Mas logo no
início de sua constituição, com o fim da escravidão, muitos negros haviam
migrado da Bahia para o Rio de Janeiro, levando consigo suas religiões de
orixás, voduns e inquices e também a de caboclos, de modo que na então capital
do país reproduziu-se um vigoroso candomblé de origem baiana, que se misturou
com formas de religiosidade negra locais, todas eivadas de sincretismos
católicos, e com o espiritismo kardecista, originando-se a chamada macumba
carioca e pouco mais tarde, nos anos 20 e 30 do século passado, a umbanda. A
umbanda e o samba, símbolo maior da nacionalidade mestiça, constituíram-se mais
ou menos na mesma época, ambos frutos do mesmo processo, que caracterizou
aqueles anos, de valorização da mestiçagem e de construção de uma identidade
mestiça para o Brasil que então se pretendia projetar como país moderno, grande
e homogêneo, e por isso mesmo mestiço, o "Brasil Mestiço, onde a música
samba ocupava lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade",
nas palavras de Hermano Vianna (1995: 20).
A migração para o Rio de Janeiro, que a partir dos anos 50 e
60 seria deslocada para São Paulo, com a nova industrialização, não se resumiu,
evidentemente, aos baianos, embora inicialmente eles tenham sido em maior
número. Chegava ao Rio gente de todos o Nordeste e também do Norte, cada um
trazendo seus costumes, suas crenças, deuses e espíritos. Cultos de mestres e
encantados acabaram desaguando fartamente nos terreiros dos caboclos e dos
pretos-velhos da chamada macumba carioca, que ia gestando a umbanda numa grande
síntese, ali na capital federal da república recém-nascida para onde convergiam
as mais diversas manifestações culturais de âmbito regional, e onde essas
diferenças regionais e locais foram se apagando para se formar um todo único
capaz de representar simbolicamente o Brasil como um todo, como uma única
nação, envolvendo todos os seus matizes raciais e as diversas fontes culturais
que animavam a construção da brasilidade.
Mais tarde, no final anos 60 e começo dos 70, iniciou-se
junto às classes médias do Sudeste a recuperação das raízes de nossa
civilização, reflexo de um movimento cultural muito mais amplo, denominado
Contracultura. Nos Estados Unidos e na Europa, e daí para o Brasil, esse
movimento questionava as verdades da civilização ocidental, o conhecimento
universitário tradicional, a superioridade dos padrões burgueses vigentes, os
valores estéticos europeus, voltando-se para as culturas tradicionais,
sobretudo as do Oriente, e buscando novos sentidos nas velhas subjetividades,
em esquecidos valores e escondidas formas de expressão. No Brasil verificou-se
um grande retorno à Bahia, com a redescoberta de seus ritmos, seus sabores
culinários e toda a cultura dos candomblés. As artes brasileiras em geral
(música, cinema, teatro, dança, literatura, artes plásticas) ganharam novas
referências, o turismo das classes médias do Sudeste elegeu novo fluxo em
direção a Salvador e demais pontos do Nordeste. O candomblé se esparramou muito
rapidamente por todo o país, deixando de ser um religião exclusiva de negros, a
música baiana de inspiração negra fez-se consumo nacional, a comida baiana,
nada mais que comida votiva dos terreiros, foi para todas a mesas, e assim por
diante.
Mas o candomblé somente se disseminou pelo Brasil muito tempo
depois da difusão da umbanda. Primeiro o Brasil como um todo conheceu e se
familiarizou com o culto dos caboclos e outras entidades "humanas" da
umbanda, em que os orixás ocupavam uma posição simbólica importante porém menos
decisiva no dia-a-dia da religião. Somente mais tarde o candomblé introduziu os
brasileiros de todos os lugares numa religião propriamente de deuses africanos.
Mesmo assim, os caboclos nunca perderam o lugar que já tinham conquistado.
Unidade e diversidade foram preechendo a tessitura nacional da cultura
afro-brasileira de âmbito religioso e profano.
Em todos os lugares onde se constituiu o culto ao caboclo,
alguns tipos sociais regionais importantes foram incorporados. Foi assim que
surgiu, por exemplo, para compor com o tradicional e destemido índio da terra e
com o sábio e paciente escravo preto-velho, o caboclo boiadeiro. O boiadeiro é
a representação mítica do sertanejo nordestino, o mestiço valente do sertão. É
o bravo homem acostumado a lidar com o gado e enfrentar as agruras da seca,
símbolo de resistência e determinação. Outro tipo social elevado à categoria de
entidade de culto foi o marinheiro. Num país em que as viagens de longa
distância, sobretudo entre as capitais da costa, eram feitas por navegação de
cabotagem, sendo que todas as novidades eram trazidas pelos navios, o
marinheiro era figura muito conhecida e de inegável valor. O marinheiro podia
representar ideais de mobilidade e inovação, capacidade de adaptação a cenários
múltiplos, amor pela aventura de descobrir novas cidades e outras gentes.
Cada tipo um estilo de vida, cada personagem um modelo de
conduta. São exemplos de um vasto repertório de tipos populares brasileiros,
emblemas de nossa origem plural, máscaras de nossa identidade mestiça. As
entidades sobrenaturais da umbanda não são deuses distantes e inacessíveis, mas
sim tipos populares como a gente, espíritos do homem comum numa diversidade que
expressa a diversidade cultural do próprio país. Uma vez escrevi que a
"umbanda não é só uma religião, ela é um palco do Brasil" (Prandi,
1991: 88). Não estava errado.
V
A aproximação com o kardecismo foi vital para a formação da
umbanda em termos ideológicos (Negrão, 1996). Veio do espiritismo de Kardec a
concepção de mundo que proporcionou a remodelação das bases éticas, ou aéticas, da religião
afro-brasileira, fosse ela africana ou cabocla. Era o nascimento da umbanda, de
feições brancas, porém mestiça, uma nova forma de organizar e unificar nacionalmente
as tradições caboclas das religiões afro-brasileiras.
Surgida na cidade do Rio de Janeiro, o primeiro cenário da
modernização cultural brasileira e contexto de acelerada mudança e
diversificação social, a umbanda foi ao mesmo templo plural e uniforme, uma
espécie de linguagem comum num diversificado meio social urbano, integrando
negros pobres iletrados e brancos escolarizados de classe média baixa. Sua
capacidade de reunir em um só panteão entidades espirituais de diversas
origens, a fazia uma representante da diversidade, ao mesmo tempo que
homogeneizava os espíritos caboclos em função de seus papéis rituais. A umbanda
manteve da matriz africana o culto aos orixás, o transe de possessão e o rito
dançado, mas seus ritos, celebrados em português, são bem mais simples e
acessíveis. Diferente do modelo africano, sua concepção de mundo é fortemente
marcada pela valorização da caridade, isto é, o trabalho desinteressado em prol
do outro, muito característico do kardecismo, religião de inspiração cristã no
plano dos valores.
O controle moral na umbanda se estende sobre a atividade
religiosa de tal modo que as entidades espirituais, os espíritos dos mortos,
devem praticar a caridade, ajudando seus fiéis e clientes a resolverem toda
sorte de problemas. A noção de que os espíritos vêm à Terra para trabalhar é
basilar no kardecismo. Igualmente, as práticas de ajuda mágica vão constituir o
centro do ritual umbandista. A incorporação da noção cristã de um mundo cindido
entre o bem e o mal, associada à necessidade de praticar a caridade, fez com
que a umbanda se afirmasse como religião voltada precipuamente para a prática
do bem. Todas as forças religiosas deveriam ser canalizadas na prática da
caridade. Isso não impediu, no entanto, que junto à prática do bem pelas
entidades do chamado panteão do bem ou da direita, surgisse, desde o início,
ainda que de modo escondido, uma "face inconfessa" do culto
umbandista: uma espécie de universo paralelo em que as práticas mágicas de
intervensão no mundo não sofrem o constrangimento da exigência ética, em que
todos os desejos podem ser atendidos. Afinal, a herança africana foi mais forte
que a moralidade kardecista e impôs a idéia de que todos têm o direito de ser
realizados e felizes neste mundo, acima do bem e do mal.
Foi nesse espaço em que a questão do bem e do mal está
suspensa que a umbanda construiu um novo modelo de entidade espiritual
denominado exu, freqüentemente associado ao diabo dos cristãos. Os exus-diabos
da quimbanda na verdade nem são o demônio cristão nem o orixá Exu do candomblé
africano. São espíritos de seres humanos cujas biografias terrenas foram plenas
de práticas anti-sociais. É nesse modelo que todas os personagens de moralidade
questionável, como as prostitutas e os marginais, são acomodados. Para resumir,
o bem conta com entidades do bem, que são os caboclos, os pretos-velhos e
outros personagem cuja mitologia fala de uma vida de conduta moralmente
exemplar (Concone, 2001). São as entidades da direita. Os de má biografia
pertencem à esquerda, não se constrangem em trabalhar para o mal, quando o mal
é considerado incontornável. Formam as fileiras dos exus e suas contrapartidas
femininas, as pombagiras (Prandi, 2001). Compõem com outros tipos sociais já
referidos uma espécie de mostruário plural das facetas possíveis do brasileiro
comum. Para não integrar os exus e pombagiras no mesmo espaço das entidades da
direita, em que se movimentam os praticantes do bem, a umbanda os reuniu num
espaço à parte, num culto que por muitas décadas foi mantido subterrâneo,
escondido e negado, a chamada quimbanda. Tipos anti-sociais e indesejáveis sim,
mas excluídos não — afinal, cada um com sua espiritualidade e sua força mágica
nada desprezível. A umbanda não exclui ninguém, na busca de uma síntese para o
Brasil nada pode ser deixado de fora.
No panteão das entidades da esquerda, as mulheres ganharam um
lugar especial. As religiões tradicionais sempre trataram as mulheres como
seres perigosos, voltadas para o feitiço, para o desencaminhamento dos homens,
fontes de pecado e perdição. É o que nos conta o mito bíblico judaico-cristão
de Eva e toda a tradição iorubá das velhas mães feiticeiras, as Iá Mi Oxorongá.
As pombagiras teriam sido mulheres de má vida; elas desconhecem limites para a
ação e são capazes, a fim de atender os desejos de seus devotos e de sua vasta
clientela, de fazer o mal sem medir as conseqüências. As famosas pombagiras, os
exus femininos, foram em vida mulheres perdidas, prostitutas, cortesãs,
companheiras bandidas dos bandidos amantes, alcoviteiras e cafetinas, jogadoras
de cassino e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil, mulheres dissolutas,
criaturas sem família e sem honra. A elas coube sobretudo a fatia da magia
relacionada a assuntos amorosos. No fundo, o culto ao panteão dos exus e
pombagiras aponta para a redenção de tipos sociais usualmente rejeitados, com a
assunção de perversões da alma que se enredam na vida real e na fantasia do
homem e da mulher comuns.
Como já disse, a umbanda é resultante de um processo de
síntese, de uniformização. A inclusão em seus panteão de personagens dos cultos
caboclos regionais teve que obedecer ao modelo dicotômico da direita e da
esquerda, e isso provocou transformações radicais em muitas entidades que
migraram para a umbanda. Assim Zé Pelintra, por exemplo, que na origem é um
mestre do catimbó, foi, no Rio de Janeiro, transmutado em exu, trabalhando para
a esquerda. Igualmente Maria Padilha, originalmente também mestra da jurema,
foi feita pombagira de renome e sucesso nas giras de quimbanda. Até mesmo a
encantada Cabocla Mariana, filha do Rei da Turquia, figura famosa da encantaria
do tambor-de-mina, muito festejada tanto Maranhão quanto no Pará (Leacock e
Leacock, 1975), viu-se em São Paulo quase transformada em pombagira. O mesmo
aconteceu com muitos outros guias espirituais.
Uma vez que a umbanda foi se alastrando pelo Brasil inteiro,
os cultos caboclos regionais, que se mantiveram vivos em seus locais de origem,
começaram a passar por um processo de umbandização. Hoje, no sertão do
Nordeste, quiçá no Brasil todo, é difícil ver um culto de jurema que não seja
no interior de um terreiro de umbanda. Até na Bahia, exus da quimbanda dançam
em velhos terreiros do candomblé de caboclo (Assunção, 2001; Caroso e
Rodrigues, 2001; Shapanan, 2001). Com o grande trânsito que hoje existe em todo
o universo religioso afro-brasileiro, personagens como os referidos Zé Pelintra
e Maria Padilha retornam aos seus locais de origem completamente transformados.
VI
Mas essa história ainda não terminou. Há algum tempo o
pluralismo religioso brasileiro vem se desenvolvendo amplamente, possibilitando
a criação de um mercado mágico-religioso em que as religiões afro-brasileiras
se expandem e ganham maior visibilidade. Cada vez mais as escolhas religiosas
são livres e as religiões ampliam suas ofertas religiosa, adequando-se aos
novos tempos, novos mercados, novos gostos religiosos. Por todo lado há novas
religiões, novos santos, novos deuses. Nos dias de hoje, a religião tem que se
atualizar para poder competir com as outras. A sociedade em permanente mudança
impõe um novo movimento de valorização da diversidade cultural. Os antigos
cultos caboclos de caráter regional vão também se tornando conhecidos nos mais
diferentes rincões do país e suas entidades ganham o status de objetos
de culto de âmbito nacional. Caminhos se refazem, personagens se reconstituem.
Não é mais tempo de buscar uma identidade brasileira que seja única, homogênea,
capaz de representar a nacionalidade num só símbolo, como ocorreu nos anos 20 e
30 do século passado. No final do século XX, alvorecer do XXI, quando a umbanda
já é quase centenária, importa agora enfatizar as diferenças, manter as
especificidades, festejar o pluralismo.
Nossos personagens sagrados, nossos mestiços espíritos
caboclos da umbanda também ganham novas feições nesse novo processo de busca da
diversidade, pois é preciso sempre se atualizar. O caboclo e o preto-velho são
as entidades fundantes da umbanda e continuam sendo ainda as mais cultuadas.
Índio e negro são matrizes tanto do povo brasileiro como dessa religião, mas, já
no contexto do Brasil urbano contemporâneo, em que o catolicismo já perdeu
cerca de um quarto de seus seguidores e seus modelos de moralidade dual perdem
importância na sociedade, outro tipo social vem ganhando cada vez mas adeptos
no universo umbandista: o baiano (Souza, 2001). Surgido nas últimas décadas, o
baiano já ganhou significativa popularidade. Sua origem mítica remete aos
velhos pais-de-santo da Bahia, aos homens negros e mulatos das cidades
litorâneas do Brasil, sobretudo migrantes residentes no Rio de Janeiro. São em
grande parte personagens da chamada malandragem carioca, pouco afeitos às
convenções sociais, mas que não chegam a ser interesseiros e maus-caracteres
nem arruaceiros e perigosos como os exus da quimbanda. Nem tampouco são exímios
curandeiros como os caboclos ou sábios conselheiros como os pretos-velhos.
Estão exatamente na fronteira entre o bem e o mal, apagando essa distinção
dicotômica moral. E rapidamente a umbanda vai deixando se fazer distinção entre
esses dois lados, o do bem e o do mal, reassumindo a visão africana de que tudo
anda junto, tudo é ambíguo e contraditório. Talvez por isso os baianos vêm
sendo tão valorizados. Eles são símbolos exemplares do novo caráter de síntese
moral umbandista que vai abandonando a dualidade cristã. Assim, apaga-se a
fronteira entre a direita e a esquerda, e os exus e as pombagiras vão deixando
de ser vistos como entidades perigosas, suspeitas e socialmente indesejáveis,
cujo culto devia ser mantido secreto, escondido. Zé Pelintra e Maria Padilha,
nossos emblemáticos migrantes, já podem voltar a ser mestres da jurema,
simplesmente. A encantada Mariana pode continuar a ser a Bela Turca.
A flexibilidade e a enorme capacidade de adaptação da
religião mestiça afro-brasileira estava já, evidentemente, inscrita no seu
nascedouro: é esta a herança dos bantos escravizados no Brasil e seus
descendentes. Seus seguidores nos dias de hoje já não são mais necessariamente
nem bantos e nem negros, mas brasileiros de todas as origens raciais que
partilham desse universo religioso mestiço. São adeptos dos encantados caboclos
que se reúnem em congressos e seminários para discutir o caráter de suas
entidades e guias espirituais e questionar suas raízes, reafirmando sua crença
em sua religião. Os fiéis crêem que seus caboclos, mestres e encantados, de
todas as origens, seguem em sua dança de transe, abrindo-lhes o caminho na
religação deste mundo material e passageiro dos humanos ao mundo eterno e
espiritual habitado pelos deuses.
* * *
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* * *
Agradeço a André Ricardo de Souza e Patrícia Ricardo de Souza, meus
orientandos no Doutorado em Sociologia da USP, pela ajuda na redação de uma
versão preliminar. Agradeço ao CNPq a bolsa de pesquisa que tem me permitido
estudar as religiões afro-brasileiras.
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Reginaldo
Prandi é Professor Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo. Em 2001
recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes, outorgado pelo CNPq, SBPC e Minc, pela
sua contribuição à preservação da memória cultural afro-brasileira, e o Prêmio
União na Diversidade, conferido pelo Intecab, Instituto Nacional da Tradição e
Cultura Afro-Brasileira. Em 2002 teve dois livros indicados para o Prêmio
Jabuti: Mitologia dos orixás, na categoria ciências humanas, e Os
príncipes do destino, na categoria infanto-juvenil. Publicou também outros
livros, como Os candomblés de São Paulo, Herdeiras do axé, Um sopro do
Espírito, A realidade social das religiões no Brasil, este em
co-autoria com Antônio Flávio Pierucci, Encantaria brasileira, do qual é
organizador, e Ifá, o Adivinho.