"Prefiro, sinceramente, deixar de atender certas pessoas preconceituosas quando visto o jaléco branco da profissão do que não poder servir de instrumento ao amparo de quem tem merecimento, quando visto o branco da Umbanda."
Racionalismo versus
espiritualidade, aparências sociais versus desprendimento, materialismo versus
fé... Estes são somente alguns dos muitos conflitos pelos quais já passei e
continuo passando desde o momento em que realmente resolvi abraçar sem
restrições o caminho do exercício da mediunidade e do trabalho caritativo na
Umbanda. Escolher uma carreira profissional essencialmente mentalista e
racional onde somos ensinados a buscar na anatomia e na fisiologia humana uma
explicação plausível para todas as doenças, tendo na anamnese clínica e no exame do corpo físico as ferramentas
fundamentais para chegar aos diagnósticos e lá pelo meio de nossa caminhada
encarnatória entendermos que existem muito mais coisas entre o céu e a terra,
realmente cria dilemas em qualquer
espírito imperfeito.
Ainda hoje com bastante habitualidade presencio algum irmão
de fé confessar que prefere manter no anonimato seus trabalhos no terreiro de
Umbanda em virtude do preconceito que ainda assola a população em relação as religiões
afro-brasileiras. Vejo-me em muitos destes depoimentos e me remeto a época em
que ao ser perguntado sobre minha religião costumava responder torcendo para
que não pedissem detalhes: sou espiritualista. Isto provavelmente contentava
minha consciência na época e satisfazia aos interlocutores que obviamente
concluíam, influenciados por minha profissão,
que eu me referia ao Kardecismo e davam-se por satisfeitos, encerrando o
assunto (para meu alívio). Em
determinado momento eis que esta saída pela tangente começou a incomodar a
minha consciência e me dar uma sensação de clandestinidade, de estar fazendo
algo muito repreensível aos olhos da espiritualidade pois escancarava um comportamento nitidamente
ambíguo e que no fundo denotava falta da vivência e interiorização de minha
própria fé. Que moral existe em esconder-se atrás de subterfúgios e
meias-verdades enquanto cobramos dos consulentes durante os atendimentos uma
postura de exercício diário da fé?
No momento em que percebi a
dádiva de estar podendo servir de instrumento aos sagrados orixás e aos irmãos
da espiritualidade que anonimamente vêm trazer conforto aos espíritos
necessitados, tanto encarnados quanto desencarnados, passei a utilizar sem o
menor prurido a palavra umbandista. Obviamente
que no meio em que atuo, onde a imagem é um artigo a ser preservado acima de
tudo e doa a quem doer mesmo que com toda hipocrisia, refletindo claramente no
volume da clientela e na inserção social de quem escolhe a carreira médica, não
foram poucas as vezes em que percebi os olhares pasmos e chocados de quem soube
da minha opção e exercício religiosos. Em mais de uma oportunidade ouvi de
colegas de profissão que não entendiam como alguém esclarecido e equilibrado
podia acreditar em tais baboseiras e virar "macumbeiro". Aliás, acho
que a palavra macumbeiro é o pavor de
todo umbandista que ainda vacila em sua crença pois traz a mente trabalhos de
magia negra, sacrifícios animais, roupas espalhafatosas e toda uma bagagem
histórica de ignorância cultural e religiosa. Apesar de passados 104 anos da
chegada da religião Umbanda no plano material, persistem até hoje um sem número
de preconceitos que vem resistindo a passagem do tempo estimulados pelo
imaginário popular e pela falta de conhecimento repassados da geração anterior
para a atual. Há poucos dias atrás vivenciei mais uma experiência que me fez ver
como isto ainda é verdadeiro. Participava de uma reunião profissional com outras pessoas da
área de saúde e com um engenheiro que fazia uma perícia em um hospital onde
atuo. No meio da conversa o engenheiro querendo traçar um paralelo com outro
assunto usando a religião como exemplo me questionou sobre minha opção
religiosa ao que pronta e naturalmente respondi: umbandista. O silêncio e a consternação ficaram quase palpáveis no
ar, houve uma espécie de baque generalizado entre todos e o sujeito sem saber
exatamente o que dizer me saiu com a pérola:"obrigado doutor, muito bacana
sua sinceridade", mudando imediatamente de assunto. Foi como se eu tivesse
acabado de confessar um segredo escabroso e certamente a imagem que lhes veio
prontamente a mente foi a minha pessoa participando de algum sacrifício as
portas de um cemitério qualquer e quase pude ver refletido em seus olhos o rótulo
"macumbeiro" escrito na minha testa. O que eu penso disto hoje? Acho
graça e sinceramente me penalizo com a limitação de conhecimento a respeito
desta religião evidenciada por muitos irmãos, mas então me lembro que há alguns
anos atrás eu era exatamente igual ou talvez ainda pior.
A impressão que tenho é que
pelo entendimento de grande parte da população qualquer profissão que tenha
tradição de dar status e projeção social é incompatível com uma religião que
nivele todos pelo branco e pelos pés descalços, fazendo a caridade sem distinção
de cor, credo ou classe social. O desconhecimento popular não permite entender
que do lado de lá, travestidos de caboclos, pretos velhos e demais
trabalhadores do astral estão médicos, físicos, engenheiros e demais
desencarnados que vivenciaram todos os tipos de profissões no plano material e
que quando necessário para a evangelização dos consulentes se apresentam
também em outras religiões mas sob
formas de suas vivências anteriores um tanto mais glamorosas, não que isto lhes
faça diferença ao ego pois somos somente nós que nos fixamos nas aparências.
A umbanda certamente ainda tem
um longo caminho a ser percorrido no sentido de derrubar tabus e mudar
preconceitos, inclusive entre os próprios trabalhadores que fazem parte de suas
fileiras. Enquanto tivermos vergonha de assumir perante a sociedade de peito
aberto a opção que fizemos não podemos exigir que a mesma mude de um dia para o
outro a imagem que se distorceu ao longo do tempo, causada também pelos
desmandos de pessoas que se dizem umbandistas e em nada praticam dos princípios
doutrinários que norteiam esta religião, muitas vezes por desconhecimento,
outras por ganho secundário.
Hoje encaro minha opção com
toda tranqüilidade, pois sei que ninguém
que porventura venha a me criticar irá levantar de manhã cedo para trabalhar em
meu lugar e garantir meu sustento financeiro, então entendo que também não devo
satisfações a quem quer que seja sobre minha fé. Prefiro sinceramente deixar de atender certas pessoas preconceituosas
quando visto o jaleco branco da profissão do que não poder servir de
instrumento ao amparo de quem tem merecimento quando visto o branco da Umbanda.
Espero ter a oportunidade de poder usar o branco do trabalho e também o da
fé até o dia em que meu corpo físico esgotar sua vitalidade e que quando este
dia chegar eu tenha o merecimento de ser assistido por algum colega de
profissão que saiba procurar as causas de meus problemas tanto no corpo físico
quanto no espiritual. Neste sentido muito já vemos de mudança de consciência no
meio científico sendo cada vez mais o ser humano visto como um ser integral e
de essência eterna e não meramente como um envoltório de carne físico e
perecível.
Que possamos mudar nossas
consciências, assumir nossas convicções, envergar com orgulho e respeito o
branco da umbanda sem receios de sermos julgados ou sem julgar a quem o fizer,
pois da mesma forma que o que está embaixo está acima, também o que está em
nosso interior é o que será refletido no exterior e nas atitudes de quem nos cerca.
E que quando enxergarmos em algum restaurante nas cercanias de qualquer
hospital, médicos recém formados ou ainda em formação fazendo a refeição
trajando jaleco branco e com o estetoscópio no pescoço, possamos lembrar que a
maturidade somente vem com o tempo e que a humildade não pode ser ensinada nas
aulas da universidade pois infelizmente para nossos espíritos infantis ela
ainda precisa ser aprendida através de
nosso próprio sofrimento ou provações.
Adriano - Médico e Médium do Triângulo.