Após um dia puxado com reuniões intermináveis na
empresa onde trabalhava, Sula voltou para casa com um pensamento estranho.
Estava cansada e sua aparência não era das melhores, devia estar parecendo um
maracujá seco. A pele repuxava pela exposição excessiva ao ar condicionado. Não
saíra nem para almoçar porque precisava ganhar tempo e junto com a diretoria
preparar a segunda parte da reunião para implantação de metas para o ano que
estava chegando. Uma trabalheira danada. Todos falando ao mesmo tempo, quando
dos intervalos para um breve descanso e um cafezinho para reanimar. E foi num
desses momentos que escutou em meio a vozerio uma frase estranha, repetida duas
vezes:
Olhou para os lados para ver se
era um dos colegas, mas reparou que estavam todos distraídos e nenhum deles
estava perto o suficiente para que ela ouvisse o que diziam. Afinal deveria ter
confundido ou ouvido parte de alguma conversa em meio a tantos comentários. Mas
quando deixava o carro na garagem do prédio ouviu novamente:
- Oi moça! Eu sou o Toquinho!
Pensou que outras vezes escutara
frases aparentemente sem sentido e ao dormir, sonhara com fatos relacionados às
mesmas. E desta vez não fora diferente. Quando Sula adormeceu sentiu um
estalido na altura da nuca, parecido com o estralo de um chicote que se
espalhava pelo cérebro. Uma eletricidade percorria sua coluna vertebral
descendo até os pés, estendendo-se para os braços e mãos. Uma espécie de
formigamento seguido de um torpor. O sono vinha logo a seguir, indo direto para
os sonhos. Vivos e coloridos. Abria os olhos e estava em algum lugar conhecido
ou não. Esta noite não seria diferente. Teve a deliciosa sensação de estar
voando. Livre, solta no espaço. Falava com alguém que não via, mas cuja presença
reconfortante e firme a guiava. Sentia o corpo leve, o peso não atrapalhava e
parecia uma pluma. Olhou para baixo e percebeu que atravessavam cidades,
campos, rios. Via tudo pequenino. Estranha e deliciosa sensação. Para onde se
dirigiam? Logo soube a resposta, porque ante seus olhos surgiu uma pequena
praia, rodeada por serras com muito verde e uma pequena vila de pescadores.
Poderia dizer pelo feitio das casas e do local que pertenciam a mais ou menos
dois séculos passados.
Ficou intrigada quando pararam a
alguns metros da praia cuja espuma branca misturada com a luz da lua conferia
um aspecto prateado ao local. Sabia que
aguardavam alguém e quando virou para o lado esquerdo divisou um vulto
franzino, de baixa estatura, parado, remexendo em uma fogueira pequena, que
ardia na noite, que surgira do nada, porque quando chegaram não havia ninguém
no local. Quem seria? Ficou observando. Não sentia medo. Ouviu novamente a
frase que durante o dia lhe chamara atenção. Oi moça! Eu sou Exu Toquinho! Lentamente caminhou em direção à voz e
foi recebida com um sorriso amável.
Poderia dizer que a figura era de
um adolescente magrinho e pequeno, entretanto o rosto era decidido e maduro.
Vestia uma roupa rústica de um tom escuro. Trazia nas mãos alguns gravetos que
eventualmente atirava na fogueira para avivar o fogo. Um cordão cingia a
cintura e por cima vestia uma capa grossa também escura. Pés descalços. E
enquanto Sula admirava a figura a sua frente,
ele falou:
- Oi moça! Sou o Toquinho e quero
deixar um recado. Adotei este nome porque foi marcante na minha caminhada. Uma
vivência de sofrimento em que penei e iniciei o resgate de muitas atrocidades
que cometi. Antigo capoeirista, se assim posso definir, rebelde e inconformado
com a sociedade da época, usei meus talentos, conquistados com muita treino e
disciplina, porque era uma pessoas magra e de baixa estatura, para me vingar daqueles que julgava
responsáveis pelo meu infortúnio. Meu apelido era Toquinho porque meus amigos
diziam que me parecia com um toco, um graveto pequeno qualquer. Não gostava de
ser tratado assim e o orgulho, a vaidade e a inveja tomaram conta de meu
coração. Era tão forte o meu sentimento de vingança que jurei desforra e não
parei nem depois que a morte me pegou de surpresa e ceifou minha vida miserável
desprovida de maiores interesses pelas verdades espirituais. Aliás, minha
ignorância era tanta que achava que a vida era o corpo físico, a comida, a
sobrevivência e o sexo, do qual era extremamente carente porque minha aparência
não era das melhores. Triste e feio desencarnei tomado de surpresa numa luta
onde meu adversário aplicou um golpe baixo e sorrateiro do mesmo modo que eu
costumava fazer para me livrar dos meus desafetos, que odiava do fundo de minha
alma. Padeci muito, não entendia que estava morto e fui parar nas zonas
umbralinas, perseguido e escravizado por aqueles que prejudicara. Foram anos de sofrimento até o dia
que não aguentando mais clamei por ajuda e gritei por Deus. Fui socorrido e
amparado. Levado para um pronto-socorro no astral e lá recebi orientação,
estudei e me esforcei muito para melhorar. Tão logo tive alta, pedi e me foi
concedido o benefício do trabalho honesto em prol dos meus semelhantes. E aqui
estou. Adotei o nome de Toquinho, para não esquecer que devo combater em mim os
vícios de caráter que provocaram a minha derrocada. Trabalho servindo, ajudando
e protegendo os irmãos que pedem ajuda. Mas somente aqueles que realmente
merecem. Sabe moça, muitos pedem, pedem, mas a justiça de Pai Xangô não falha.
E Sou convocado a agir. Uso alguns toquinhos que remexendo aqui e ali podem dar
um impulso na vida do sujeito ou simplesmente derrubá-lo de volta ao seu lugar
de direito. Até que aprenda a se comportar. E assim vou seguindo. Muitos manos
que me veem assim franzino pensam que não sou de nada e nem forças tenho. Mas
não se enganem é somente ilusão e aparência, nada mais. Sou o Toquinho e estou
aqui para servir! Salve meus irmãos!
Laroyê Exu Toquinho!
Lizete
Iria