"...no momento em que as escolas entrarem na avenida, eles estando junto, se deslocariam entre os seres desencarnados atraindo-os com a música alegre e contagiante, afastando-os então do povo, numa tentativa de impedir que influenciassem pessoas com ideias nefastas, desmanchando desta forma o ataque de falanges das trevas, contra a multidão de desavisados, nas noites de folia profana."
Os preparativos
para os festejos carnavalescos estavam intensos e os trabalhadores da Escola
Unidos da Vai Que é Festa, grupo com sede na periferia de uma grande cidade
brasileira, agitavam-se no barracão, correndo de um lado para outro, terminando
a montagem dos carros alegóricos, conferindo as fantasias, ultimando os
preparativos de acordo com o tema escolhido para o desfile na passarela do
samba. Uma correria danada, coordenar todo o pessoal envolvido, definir quem
faria o que, para que tudo saísse nos conformes como o planejado ao longo do
ano. O tema escolhido apresentaria o enredo “Os Prazeres do Mundo” e uma ala de
belas mulheres selecionadas criteriosamente, vestindo peças de roupas
minúsculas, praticamente seminuas, com os corpos esculturais a mostra, gingando
e sambando, num convite capcioso a festejar os prazeres e licenciosidades da vida,
com certeza faria o maior sucesso. Levantaria o público e os jurados, causando
furor, excitando os sentidos de tal forma que seria praticamente impossível não
ser tocado pela onda de sensualidade que se espalharia pela avenida. As
fantasias cuidadosamente escolhidas e o brilho das lantejoulas dariam o toque
de mil e uma noites com sedas, cetins e plumas, muitas plumas. O ouro que seduz
brilhando, ofuscando os sentidos na noite mágica dos festejos momescos em que a
população deixa tudo de lado para curtir as delícias do carnaval. Colocando
todos os recalques para fora numa tentativa de lavar a alma na folia.
Praticando toda espécie de barbaridades e soltando os baixos instintos na
multidão desconhecida e sem rosto. Quando o desvario toma conta de alguns seres
que então aproveitam para praticar todo tipo de atrocidades. Sendo que algumas
terminam de forma trágica e outras o resultado se faz sentir no espaço de nove
meses, quando nascem os filhos indesejados do carnaval. Crianças que não foram
geradas com amor e respeito e que provavelmente nem saberão quem é o pai.
Muitas serão consideradas produção independente e as mães irão arcar com a
responsabilidade de criar os rebentos sozinhas, com todo o ônus que acarreta
tal tarefa pesando em suas costas. Outras serão atiradas nos orfanatos e outras
talvez tenham a sorte de encontrar uma família para adoção. E aquelas que não chegarão a nascer, por
práticas de aborto ilegal?
Janda pensava sobre o assunto e divagava
observando o movimento de uma pequena sala localizada no mezanino do barracão,
tendo ao seu lado um velho conhecido que a amparava e conduzia nos trabalhos em
desdobramento astral e com o qual trocava ideias, sobre a agitação e o
nervosismo que haviam se instalado naquelas pessoas, visto que o grande dia
estava chegando. Faltava apenas um mês para o desfile. Atentos ao corre-corre perceberam
quando um grupo totalmente diferente daqueles que ali trabalhavam se aproximou
e misturou-se entre o pessoal da escola de samba. O responsável pelo grupo recém-chegado
se aproximou, apresentando-se como um representante do Senhor Sete da Lira.
Janda
arregalou os olhos, abriu a boca e de queixo caído, olhou para o amigo que a assistia
numa interrogativa muda que lhe deu um ar estranho e bizarro que não passou
despercebida pelos dois, arrancando deles sorrisos discretos, apesar do
semblante sério e compenetrado. Logo ficou sabendo do motivo que os reunira
naquele local estranho. Mesmo tendo se perguntado mentalmente, por que fora
designada para tal encontro, recebeu de pronto a resposta que a deixara
curiosa. Ainda mais que o grupo estava vestido a rigor, isto é, trajes de seda
com casacas e cartolas, alguns de branco e outros de preto. Traziam consigo
seus instrumentos musicais, violas, flautas, pistons, tamborins... Um tanto
curioso e diferente de tudo que vira, porque alegres, cantando e tocando se
misturavam com os integrantes da escola. O Senhor Sete explicou que tinham por
missão acompanhar esta e outras escolas, infiltrando-se entre as alas e entre a
bateria, porque pretendiam inspirar bons pensamentos naqueles seres, para que
não fossem responsáveis por possíveis atos desastrados e pesarosos, que
poderiam futuramente causar graves consequências entre eles e entre aqueles de
cabeça fraca que se deixassem levar no embalo da insinuação do samba enredo com
apelo irresistível ao desvario de toda ordem. E que no momento em que as escolas entrassem na avenida, eles estando
junto, se deslocariam entre os seres desencarnados atraindo-os com a música
alegre e contagiante, afastando-os então do povo, numa tentativa de impedir que
influenciassem pessoas com ideias nefastas, desmanchando desta forma o ataque
de falanges das trevas, contra a multidão de desavisados, nas noites de folia
profana. Tais espíritos seriam encaminhados para locais próprios onde
receberiam assistência e amparo, com estudo de suas fichas cármicas. Todos
receberão ajuda e orientação, impedindo que aumentem ainda mais seus débitos
com a justiça. Quem vai determinar o que acontecerá depois são os tribunais nos
quais serão julgados de acordo com suas consciências, tudo organizado e
dirigido por Pai Xangô e Senhor Ogum, sob as bênçãos de Oxalá. A nós cabe
apenas organizar o trabalho na crosta e encaminhar os recalcitrantes, com base
na ordem e no respeito. Agora se me dão licença, preciso resolver alguns
detalhes da operação com meus comandados. Dito isto fez um leve e elegante
gesto de despedida e foi de encontro aos companheiros que o aguardavam.
Janda virou-se para o amigo
espiritual e este comunicou que era hora de voltar, pois estava amanhecendo.
Acordou e abriu a janela do quarto que dava para o mar. O cheiro gostoso e
reconfortante trazido pela brisa fresca da manhã, juntamente com os primeiros
raios de sol, anunciavam o raiar de um belo dia. Em seus ouvidos ecoava uma
música... Seu Sete da Lira... Chegou lá de Aruanda... Seu Sete da Lira Baixou
neste Congá...
QUÁ! QUÁ! QUÁ! QUÁ!
Lizete
Iria