A emoção desdobrava em lágrimas, enquanto sentada, à entrada do sepulcro aberto na rocha, conjeturava: que acontecera? Para onde O teriam levado e por que O trasladaram daqueles sítios, no silêncio da noite?
A
inquietação assumia proporções de desespero que a dominava lentamente.
O
Sol irisava as nuvens pardacentas e o vento frio sacudia as poucas anêmonas e
raras rosas por entre os arbustos.
Na
mente ecoavam, sonoras, as vozes dos mancebos de vestes alvas, que lhe
disseram: “Não tenhas medo, porque eu sei que buscas a Jesus, que foi
crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou...”.
Ela
cria que o Mestre, conforme dissera, ressuscitaria dos mortos. Temia, no
entanto, que os judeus houvessem roubado o corpo.
Atemorizadas,
Joana de Cusa, Maria, mãe de Marcos, e as outras companheiras desceram à cidade
para anunciar o desaparecimento do corpo do Rabi.
Pedro
e João subiram o monte ansiosos e constataram os fatos: os lençóis com as
substâncias aromáticas do embalsamento no túmulo vazio, o lenço, a pedra
afastada...
Estarrecidos,
os dois discípulos retornaram à cidade, com as tristes novas; ela ficara
chorando.
Os
acontecimentos daqueles últimos dias foram muito dolorosos e surpreendentes.
Não conseguia compreender nem concatenar os sucessos.
Uma
saudade feita de pungente dor estrangulava-lhe o peito.
Foi
muito rápido. Teve a impressão de uma aragem que perpassou levemente perfumada.
Voltou-se
para trás e por entre as lágrimas viu, a poucos metros, um homem que lhe
perguntou:
Aquela voz, aquele perfil! Não pôde concluir o raciocínio.
“- Maria!”.
“- Raboni”.
O
deslumbramento dominou-a. O Mestre vivia e ali estava, radioso como a madrugada
nascente!
“-
Não me detenhas!... vai para meus irmãos e dize-lhes que eu sigo para meu Pai e
vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.
A
luz de ouro do amanhecer incidia sobre as suas vestes, que fulguravam, e
miríades de pequeninos sóis pareciam incrustados n´Ele.
Ficou
esmagada de felicidade. Desejou traduzir com palavras as impressões
incomparáveis como as dores vividas até há pouco. Não pôde fazê-lo; a voz
estava morta na garganta hirta e constringida. “Vai para meus irmãos e
dize-lhes...” – reboava-lhe nos refolhos do espírito.
Pôs-se
de pé. Sorriu e, sem mais delongas, tomou o rumo da cidade que despertava, com
a alma em cânticos de excelsa alegria.
O
leve ar da manhã embalsamada com os últimos perfumes da quadra, o verde dos
campos de Acra e Bezeta, a paisagem emoldurada de Sol com o píncaro dos montes
debruado a ouro – eis a tela sublime em que Ele volvera.
Venceu
a distância com febricidade e atingiu o cenáculo onde os companheiros se
acolhiam constrangidos e receosos.
Pairavam
no ambiente triste as sombras do desgosto.
Ela
disse, logo que atravessou a porta, e sua voz cantava:
Eu O vi, vi o Rabi! O Mestre voltou aos que O amam!
Sorria
e chorava. Tartamudeando, com o rosto rubro pela emoção, prosseguiu:
- Mandou-me anunciá-LO aos seus irmãos. Elevar-se-á ao Pai. Ouvi bem: Jesus
vive!
Todas
as suas fibras tremiam, como se fossem disjuntar.
Sua
voz vibrava harmonias que não encontravam receptividade no coração dos
companheiros. Àqueles, ela conhecia da convivência diária naquelas últimas
semanas.
-
Conta-me, filha – falou Maria, ansiosa, aquela que era mãe d`Ele – fala-me,
tudo. Meu filho voltou?
A
voz tremia de compreensível emotividade.
- Não o creio – bradou alguém dentre eles. – O Mestre morreu e deixou-nos nesta
dificuldade, a sós... Não creio na Sua volta. Só mesmo eu O vendo...
Ela
relanceou os olhos muito brilhantes pelo recinto, procurando o contraditor.
Ele
avançou na sua direção, face contraída num rictus de ira e desencanto. Antes
que ela dissesse algo, ele se interpôs, frente ao auditório perplexo, atônito,
e vociferou:
- Mesmo que Ele viesse...
Interrompeu-se
numa pausa.
- ... iria apresentar-se a quem? Certamente que a Simão que Ele elegera para
conduzir-nos; ou a João, a quem sempre distinguiu com o Seu amor; ou a Sua
mãe...
Transparecia
no tom sarcástico e zombeteiro da palavra cortante todo o azedume do seu
espírito atormentado e infeliz.
E
depois de pausa maior, ante a estupefação de todos:
-... Mas a ti Ele apareceu? Não, não o creio. Não creiamos. Não é possível que
Ele tenha aparecido exatamente a ela. Não estiveram outras no sepulcro? João e
Pedro lá não foram? Por que a ela?...
Foi
como uma chuva de gelo e mal-estar que caísse sobre todos.
Um
silêncio incômodo invadiu a sala.
Ela
recuou.
As
indagações finais foram cruéis punhaladas. “A ti?” “Por que a ela?” Eram ácidos
queimando e requeimando.
Mesmo
assim, com grande esforço, vencendo o próprio sofrimento, retrucou com voz
débil:
- É verdade! Mesmo que não o creias, eu O vi. Apesar da minha antiga e infeliz
condição – balbuciou humilhada – a mim me apareceu há pouco o Rabi...
-
Eu o creio, filha – acentuou a sua saudosa mãe. – Secreto pressentimento diz-me
que meu Filho vive. Eu o creio, porque sei que a nossa dor e saudade estão com
Ele, como a Sua saudade se demora em nós.
Envolveu-a
docemente e procurou ouvi-la com atenção e carinho.
Mentalmente
ela refez os caminhos percorridos – longos e tortuosos!
Muitas
vezes a bofetada lhe estrugiria em plena face. Era mesmo natural que lhe
duvidassem da palavra. Ela sentia toda podridão. Não fora o chamado do rabi e
estaria, talvez, na enxerga da infinita descompostura ou na total destruição. E
muitas vezes, no futuro, verteria o pranto da recuperação, até às fezes, por
ter sido louca.
É
comum proclamar-se virtude, meditava, e impedir-lhe a propagação.
Quantas
novas tentações estava procurando sublimar, só ela o sabia.
Facilmente
se impreca contra o erro, mas bem poucos são aqueles que alongam as mãos
convertidas em alavancas de soerguimento para ampararem as vítimas da
ignorância e da criminalidade.
Não
que desejasse justificar-se.
Sua
conduta fora inclassificável. Ela fora abjeta, sim, reconhecia-o.
Em
Magdala, seu nome e sua vila faziam parte integrante do roteiro de degradação
da cidade.
Ali
se estabelecera...
*
Magdala
era um centro de comércio e indústria de muita prosperidade. Para lá acorriam
mercadores e aventureiros de todo o Oriente. Reclinada sobre as bordas do mar,
gozava de clima ameno e desfrutava de águas piscosas privilegiadas.
Estação
de repouso, recebia viajantes ilustres e nobres gregos, romanos, babilônicos,
fenícios, medos que lhe disputavam as amenidades, conseguindo negócios rendosos
e prazeres fáceis.
Compreensivelmente
afluíam, também, aventureiros e cortesãs de corpos cansados que exibiam em
luxuosas residências a mercadoria do próprio sofrimento, em noites de orgia e
loucura, no caminho da queda total nas valas morais.
Depois
de dolorosas e rudes experiências, ela conseguira adquirir, na cidade famosa,
luxuoso palacete, favorecido com jardins e pomar imenso onde sicômoros antigos
e vetustos confraternizavam com plátanos, roseiras e madressilvas pequeninas.
Em
sua casa recepcionava os homens mais requestados que transitavam pela urbe
agitada.
Era
muito jovem; o licor da mocidade corria capitoso e sedutor, atraindo
compradores ricos, que se disputavam a vaidade de consegui-lo.
A
noite sempre lhe fora comparsa discreta, pois que, ao cair das sombras e ao
acender das lâmpadas e tocheiros, a velha porta de carvalho, nos muros externos,
dava acesso àqueles que, na via pública, por preconceitos e hipocrisia,
exibiram a honra de apedrejá-la logo houvesse ocasião...
Possuía
na sua vivenda de linhas gregas, sóbrias, tudo quanto a ambição pode cobiçar:
jóias exóticas de alto preço, perfumes raros e essências originais em
vasilhames de alabastro trabalhado, tapetes persas e babilônios, arcas
abarrotadas de sedas e damascos, móveis de mogno artisticamente lavrados,
moedas de todas as procedências, servos originários de vários países... tudo
quanto a vaidade diz que produz felicidade. Mas não se sentia feliz nem ditosa.
Na
imensa residência rica, cheia de preciosidades, se sentia vazia, vulgar e
atormentada.
A
sua condição de mulher rica não lhe mudava o caráter infame de pobre meretriz, mercadora
dos perfumes da ilusão.
Sofria
indizível amargura.
Em
longas e tristes noites de soledade, parecia escutar vozes zombeteiras que lhe
chicanavam a desdita e quase sempre experimentava os incomparáveis tormentos da
obsessão pertinaz na mente e carnes cansadas e doloridas.
Diziam-na
endemoninhada e temia sê-lo.
As
mulheres, talvez mais felizes, além de seus muros, invejavam-na, detestando-a
ao mesmo tempo e os homens inquietavam-na, perseguindo-a.
Tinha
ânsia de paz no imenso cairel do abismo das paixões aniquiladoras e desejava o
amor – um estranho amor – um estranho amor que ambicionava secretamente e sem
que o encontrasse.
O
amor que conhecia era, em verdade, luxúria e dissabor.
Acreditava
no amor que fosse feito de paz e ternura, doação plena e tranqüilizante. Não
esperava fruí-lo, todavia. Era sumamente infeliz, aguardando, um dia não muito
longe, a selvajaria de algum guerreiro déspota impiedoso ou as pedras da falsa
pudicícia, na praça...
De
coração generoso, gostava de ajudar e por ser infeliz compreendia a dor dos
sofredores e se apiedava da aflição dos desditosos. Suas mãos e dedos
adereçados derramavam moedas e ofertavam pães, e se as portas da sua casa se
fechavam freqüentemente aos servos do prazer, seus servos tinham severas ordens
de abri-las à dor e ao sofrimento que buscasse ajuda ou guarida.
Quando
a serenidade lhe possuía a mente, voltava à infância, risonha, como em sonhos e
enlevos festivos, surpreendendo-se, depois, com a realidade causticante.
*
O
nome d`Ele soava na acústica dos corações como a melodia suave de uma harpa
tangida ao longe.
A
dor foge, ao contato das suas mãos, e a luz dilata pupilas mortas; uma alegria
espiritual invade aqueles que convivem com Ele e uma esperança estranha e doce
empolga os corações, onde Ele se encontra – comentavam todas as vozes.
As
servas falavam sobre Ele com estranho fascínio no olhar, antes mortiço e sem
vitalidade. Chamavam-nO Libertador e completavam que não era um libertador
comum, quais aqueles que prometem quebrar as algemas de ferro da escravidão
política e social, mas um singular salvador que oferecia paz perene e
libertação total: tranqüilidade e segurança íntima independentes da situação
física em que transitassem.
Nas
praças ou nas praias, pelos caminhos as multidões seguiam-nO fascinadas, como
se Ele exalasse felicidade, naqueles dias rudes de provanças e misérias.
Numa
noite de perfumes primaveris, instada por uma serva de confiança, dedicada e
fiel, permitiu um diálogo com Ele.
Trazia
o coração opresso e sentia álgida constrição das forças ignotas que lhe
atenazavam o espírito, perturbando-lhe a razão e amargurando-lhe as horas.
A
jovem, que O escutara às vésperas, falou com desembaraço:
- Senhora, hoje Ele pernoita perto daqui, em Cafarnaum. Ide vê-LO, senhora!
A
voz era quase súplice.
Dançavam-lhe
na mente as fantasias do seu desespero, e assim mesmo, considerou:
- Receber-me-á, o teu Rabi? – dissera com desprezo de si mesma. – Os Rabis são
puros e detestam os infelizes, levantando a voz para ameaçar com castigos e
punições aqueles que, iguais a mim, tombaram nas rampas da desgraça...
- O Rabi – esclareceu a jovem, entusiasta -, ama os sofredores e confabula com
todos, informando que as impurezas muitas vezes estão ocultas e ninguém as vê,
dignos todos, no entanto, de compreensão e ajuda.
- Mas, eu sou diferente. Tu sabes que sou... (Lágrimas fluíram quentes e
confortadoras como há muito não expunha).
- Senhora, Ele diz que veio encontrar o que estava perdido.
- Sou uma condenada... dominada por Espíritos imundos!
- Ele é a Porta de redenção.
-?...
Vamos,
senhora! Ele vos receberá!
A
noite balouçava luzes miúdas no firmamento escuro, quando uma embarcação
singrou as águas, no rumo de Cafarnaum.
O
diálogo fora breve. Toda uma vida, porém, perpassou nele...
Ao
retornar não era a mesma.
Estranha
e poderosa transformação imprimira no seu íntimo esperanças e ideais novos,
dantes jamais sonhados.
Sentira-se
morrer enquanto O ouvia e sentira-se viver enquanto retornava.
Na
manhã seguinte Magdala soube, pasmada, a notícia da conversão da pecadora.
Distribuíra tudo quanto possuía e, com o estritamente necessário, iniciara vida
nova.
-
Retornará – zombavam uns.
- Sempre foi louca! – mofavam outros.
- A cidade não a perderá; voltará às noites de prazer! – arrematavam os mais
cínicos.
Transcorridos
poucos dias...
*
Magdala
era uma cidade paradoxal.
Rica
e deslumbrante, hospedava esses caracteres exóticos e atrabiliários que pululam
em todas as cidades de luxo e lazer, em todos os tempos.
Havia
em Magdala um homem de hábitos estranhos. Chamava-se Simão e se permitia o
devaneio de recepcionar pessoas ilustres que transitavam pela urbe famosa.
Simão era fariseu, tendo o orgulho de zelar pelas tradições e exibir a fortuna
pessoal.
Pelo
seu palacete passaram respeitáveis figuras das artes e do pensamento, gênios
das guerras e das leis, sacerdotes e magos itinerantes. E os banquetes com que
os homenageou, homenageando a si mesmo, foram comentados por toda a cidade dias
a fio.
Simão,
como todas as pessoas de Magdala, ouvira falar sobre Jesus. Empolgado com a
notoriedade do Galileu, teve a idéia de recebê-lO em seu lar, apresentá-lO aos
amigos, dialogar com Ele.
Talvez,
pensava Simão, fosse o Esperado Libertador, conforme lhe afiançara um rico
mercador, e seria prudente ser-Lhe amigo para estar em triunfo à hora do seu
triunfo; se fosse um Rabi autêntico, ser-lhe-ia honroso receber um homem santo,
naqueles dias de franco profetismo em Israel.
Sabendo
que o Mestre se encontrava perto de Magdala, enviou emissários com o convite
auspicioso.
Tendo-o
aceito, no dia aprazado, o Rabi e dois discípulos, ante a curiosidade dos que
acorreram à estrada por onde deveriam passar, chegaram à casa engalanada e
foram recebidos com risos de júbilo e mal disfarçado motejo.
Introduzidos
à intimidade doméstica, o repasto teve início.
Os
divãs espalhados receberam os convidados confortavelmente e os servos,
conduzindo as pequenas mesas com iguarias e frutos secos, puseram-se,
obsequiosos, a servir.
Harpas
dedilhadas suavemente enchiam a sala ampla, entre colunas esguias, de melodia
triste.
O
ar, porém, pesava.
Simão
olhava de esguelha o Estranho que parecia distante.
Silêncio
incômodo entre os convidados tornava a festa insípida, desagradável.
As
motivações de palestras redundavam em respostas monossilábicas, sem interesse.
Quase
a fim do banquete, ouviram-se gritos e vozes em altercação violenta, quando,
subitamente, irrompeu sala a dentro a figura desgrenhada e chorosa de estranha
mulher.
Os
cabelos desnastrados se colavam à larga testa banhada de suor; os olhos
brilhavam com intensidade, fora das órbitas; os zigomas salientes, corados,
pareciam maçãs maduras; as vestes desalinhadas...
Ela
olhou em derredor, como se procurasse alguém e, semi-enlouquecida, arrojou-se
aos pés do Rabi, que permaneceu, impassível, na posição em que se encontrava.
Tudo
fora tão rápido, que Simão não tivera tempo de tomar qualquer atitude.
Estava
estupefato! Conhecia, sim, aquela mulher. Visitara antes sua casa e lá
participara de alguma noite orgíaca...
Estranha
sensação visitou-o num átimo.
Suor
frio e abundante começou a escorrer, desagradável.
Seu
lar honrado acolhia uma mulher de má vida.
Desejou
expulsá-la. Intentou mesmo fazê-lo. Temeu, porém.
Conhecia
a coragem dela, a sua audácia, pois que se atrevera a chegar até ali...
Era
Maria!
Transtornada
pela vitória que experimentara desde o encontro com o Rabi, sentira-se liberta
dos sete Espíritos demoníacos que a infelicitavam. Era outra, inteiramente
renovada.
Quanto
sofrera sob o jugo deles!
Mortificações,
desesperos sem-nome, crises terríveis de languidez e pavor experimentara nas
suas malhas cruéis.
Desde,
porém, que os Seus olhos claros, na noite que O fora ver, incidiram sobre ela,
que se sentia libertada.
Uma
alegria nova, como jamais dantes experimentara, dominou-lhe o espírito aturdido
e sofredor.
Sentia-se
esperançada, embora recém-saída do pantanal.
Conjecturando,
recordava-se das palavras d`Ele, no encontro inolvidável: “Há flores perfumadas
e de brancura imaculada que espalham aroma sobre o lodo que lhes segura as
raízes...”
Refaria
os caminhos. Lutaria!
Após
libertar-se da canga da posse desejou, publicamente, apresentar os sinais
inequívocos do seu renascimento.
O
banquete na casa de Simão, que ela conhecia, significava sua oportunidade.
Não
trepidou. Poderia ser expulsa ou mesmo lapidada. Não tinha de que recear. Mesmo
que fosse necessário resgatar com sangue suas culpas, estava disposta a lavar a
própria vergonha.
Animada
por tais pensamentos seguiu arrebatada com a mente em febre de esperanças.
Ei-la,
agora, ali. Todos a fitavam com desagrado. As lágrimas saltavam-lhe dos olhos e
caíam sobre os pés dEle. Enxugava-os com a basta cabeleira.
Quebrou
o gargalo do vaso de alabastro que conduzia e derramou o ungüento nos pés do
Rabi, balsamizando-o com piedoso carinho. O perfume de rara essência invadiu o
recinto e ela prosseguiu repetindo o generoso gesto.
Ele
não dizia nada, como se nada sentisse.
O
almoço foi encerrado friamente. Os demais convidados faziam questão de não
ocultar o falso constrangimento.
Entre
dentes e irado, Simão resmungava:
“
– Se este fosse profeta bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois
é uma pecadora”.
Jesus
relanceou tranqüilamente os olhos muito puros, e com serena entonação de voz,
indagou:
“ – Simão! Uma coisa tenho a dizer-te”.
“ – Dize-a, Mestre “.
“ – Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos e o outro
cinqüenta dinares. Não tendo eles com que pagar a dívida, perdoou-lhes a ambos.
Dize, pois, qual deles o amará mais?”.
Simão sorriu pela primeira vez. Era astuto, hábil nos negócios. Instado à
conversação direta, respondeu com alegria:
“ – Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou”.
“ – Julgaste bem”.
O
Rabi dirigiu à mulher sofredora e inquiriu Simão, outra vez:
“- Vez esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas
esta mos regou com lágrimas e mos enxugou com os seu cabelos. Não me deste
ósculo, mas esta, desde que entrou, não cessa de me beijar os pés. Não me
ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com ungüento... Por isso te
digo que os muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a
quem pouco é perdoado pouco ama”.
Simão
estava estarrecido. Não compreendia aquelas palavras claras, talvez pelo
impacto das desordenadas emoções que estrugiam no seu espírito atormentado e
pusilânime.
Abriu
desmesuradamente os olhos e fitou o Rabi.
O
Mestre pôs-se de pé e oferecendo as mãos à pecadora, falou com doçura:
“- Os teus pecados te são perdoados... vai-te em paz!”.
Ela
se levantara de um salto, exuberante de felicidade, e explodindo sonora
gargalhada saiu, como chegou: a correr.
Desapareceu
de Magdala.
Todas
as tardes, porém, na multidão, ajudando crianças enfermas, oferecendo olhos a
cegos e mãos a trôpegos, arrependida e ansiosa pela própria renovação total,
pôs-se a seguir a Jesus de cidade em cidade, por onde Ele fosse...
Há
poucos dias entrara com os demais galileus, jubilosa, em Jerusalém.
Havia,
porém, tanta tristeza n`Ele, ao cavalgar com o jumento, que se entristecera,
também.
*
Continuou
repassando os acontecimentos pela mente atribulada.
A
denúncia de Judas, a prisão d’Ele, o julgamento arbitrário, a caminhada para o
monte da Caveira...
Daria
a vida para ter-Lhe diminuído os sofrimentos.
Quando,
com as outras mulheres que O seguiam, O vira cair, correra a sustentá-LO.
Ele,
estóico e sublime como sempre, lhes falou por entre lábios macerados e feridos:
“- Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por
vossos filhos. Porque dias virão em que direis: Bem-aventuradas as estéreis e
os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram! Direis aos montes:
caí sobre nós e aos outeiros: cobri-nos. Porque se ao madeiro verde fazem isto,
que se fará ao seco?”.
Gargalhadas
zombeteiras estrugiram na multidão...
Por
fim a dolorosa hora da Cruz.
Ante
as lágrimas de Sua Mãe, fizera o legado da fraternidade universal, entregando-a
a João e este àquela. Ele ficara no madeiro da infâmia.
Fitando-o
exangue, já exânime, nos instantes extremos, receara enlouquecer de dor, ao
lado de Sua Mãe, quando notou que a cruz, símbolo tradicional de punição, se
tornava rota eloqüente de sublimação, após Ele: uma ponte para a Imortalidade.
Quando
a cabeça d`Ele pendeu, desejou cingir-lhe outra vez os pés, e osculá-los com
ternura, mas se sentiu imobilizada...
*
Abriu
os olhos doridos de chorar ante as recordações.
-
Bom animo, filha! – falou ternamente a Mãe sublime. – As nossas dores estão com
Ele.
- Eu O vi, mãe! – gaguejou.
- Creio-o, filha. Creio, sim. Sei que meu filho vive!
*
Os
dias passavam agora feitos de saudade e recordações. Voltou com os companheiros
à Galiléia franca e generosa, às águas inquietas do mar que Ele tanto amara.
A
frase terrível, com que o companheiro invigilante a satirizara, continuava
perseguindo-a mentalmente.
Lá
Ele reapareceu e falou longamente a todos, quase quinhentos, concitando-os à
pregação dos seus “ditos” e à edificação do Reino da luz nas fronteiras do
espírito.
“Ide
e pregai a todas as gentes...”.
“No mundo só tereis aflições...”.
“Lembrai-vos de mim, eu venci o mundo...”.
“Eu vos mando como ovelhas mansas...”.
Soavam
no ar os novos ensinos...
Ontem
foram as notícias trazidas pelos jornaleiros dos caminhos de Emaús, hoje era a
pesca incomparável... Ausente, Ele jamais estivera tão próximo inundando os
corações com Sua presença inconfundível.
Era
o ministério que para eles começava...
Quarenta
dias depois dos terríveis acontecimentos, Ele apareceu à Sua Mãe e aos Onze,
que estavam em Jerusalém, e levou-os até Betânia. Todos O seguiram ansiosos, felizes,
como nos dias idos...
Não
era, porém, a jornada, como outrora. Entre eles havia felicidade e também
temor. A felicidade do reencontro e o temor da fraqueza de que deram mostras.
Chegando
ao cume da montanha, com a cidade resplandecente aos seus pés, os companheiros
perguntaram:
“Senhor,
restaurarás Tu, neste tempo, o reino a Israel?”.
O
Mestre olhou-os com aquela tristeza do passado. Os amigos ainda não
compreendiam qual era o Seu Reino, reino sem dimensão geográfica nem política,
a perder-se nas galáxias do firmamento...
Respondeu-lhes
com o acento de excelsa compreensão:
“- Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo
seu próprio poder”.
E
ante a muda interrogação de todos, acrescentou:
“- Recebereis as virtudes do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e
ser-me-eis testemunhas em Jerusalém como em toda a Judéia, Samaria, até aos
confins da Terra”.
Todos
estavam com os olhos fitos n`Ele e, só então, perceberam que Ele ascendia
lentamente, as mãos voltadas para eles num gesto de afago, as vestes luminosas,
até desaparecer nas alturas...
Depois
de lutas tiranizantes consigo mesma, experimentou a soledade e o abandono,
quando todos se foram a pregar e viver a Mensagem.
Estando
a sós, a pervagar pelas praias longas que O recordavam, encontrou leprosos que
vinham de longe buscar socorro nas mãos d`Ele e, como chegassem tarde,
abraçou-os como irmãos e partiu para o vale dos imundos, cantando salmodias de
felicidade.
*
Rediviva
desde quando O conhecera, ao morrer às portas da cidade de Éfeso, demandou a
Vida nos braços de Jesus aquela cuja experiência e amor total ao Mestre são
lições vivas, vencendo os séculos...
A Rediviva de Magdala - Do livro Primícias do Reino
Divaldo Franco / Amélia Rodrigues espírito