Praticamente
nasci e cresci na casa espírita, onde, desde cedo percebi atitudes
discriminatórias com relação aos chamados espíritos de índios,
caboclos e pretos velhos. Vistos como “irmãos inferiores” dentro
da escala evolutiva, ainda hoje, esses espíritos continuam a usar a
“entrada de serviço” ao chegarem aos centros. A velha visão
“eurocêntrica” tão comum aos europeus da época de Allan
Kardec, continua a ser aceita sem restrições no meio espírita. E
isso, porque nós espíritas alardeamos aos quatro cantos do mundo
que o espiritismo é uma doutrina científica e progressista.
Infelizmente,
contrariando o próprio codificador, muitos espíritas têm os livros
da codificação como infalíveis e inquestionáveis. Alguns
conceitos contidos nas obras básicas – e isso não é motivo para
termos vergonha -, necessitam ser atualizados em caráter de
urgência. Se não o fizermos, correremos o risco de cairmos no
ridículo. As reações a essa re-leitura do pensamento de Allan
Kardec – por parte de setores conservacionistas e fundamentalistas
do movimento -, causam prejuízos que já podem ser sentidos: o
ortodoxismo importado de outras religiões que, em muitos aspectos,
soa como dogmatismo.
Muitos
articulistas espíritas quando abordam essas questões fazem
verdadeiros malabarismos a fim de explicarem o inexplicável. A minha
admiração por Allan Kardec reside justamente no fato de ele ter
sido um homem como outro qualquer. Deixou uma inestimável
contribuição ao pensamento humano, porém, sofreu as limitações
impostas pela época em que viveu, pensou e escreveu. Isso, não é
nenhum desdouro. De que adiantou Kardec ter dito que o espiritismo
deveria sempre acompanhar a ciência? De que fé inabalável somente
seria aquela capaz de encarar a razão face a face? Observemos os
textos abaixo transcritos:
“Com
efeito, seria impossível atribuir a mesma antiguidade de criação
aos selvagens que mal se distinguem dos macacos, que aos chineses, e
ainda menos aos europeus civilizados” (Allan Kardec – A Gênese).
Ou, ainda em Obras Póstumas, quando trata da “Teoria da beleza”:
“O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um
gato; mas não é belo no sentido absoluto, porque os seus traços
grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos
instintos; podem bem exprimir paixões violentas, mas não saberiam
se prestar às nuanças delicadas dos sentimentos e às modulações
de um espírito fino”.
Espírita
honesto algum, em sã consciência, pode negar que em A Gênese, e em
Obras Póstumas, ao se expressar sobre os negros e chineses, Kardec
deixa escapar conceitos nitidamente preconceituosos. Preconceituosos
sim, mas não racistas, como querem fazer acreditar alguns detratores
mal intencionados da doutrina espírita. Entretanto, para os europeus
do século 19, a Europa era, sem dúvida, a “última coca-cola
gelada do deserto”. Deveria ser, assim, o parâmetro para se
avaliar todas as demais culturas do mundo.
Kardec
não criou essa visão antropológica, apenas seguiu a idéia
predominante na época: o etnocentrismo: “visão do mundo
característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou
nacionalidade socialmente mais importante do que os demais”
(Dicionário Houssais da Língua Portuguesa).
O
que é inadmissível, contudo, é que ainda hoje tais conceitos
permaneçam presentes em tais obras. Numa época em que o Projeto
Genoma desfez a crença de que existe uma raça superior,
demonstrando que negros, índios, brancos e asiáticos diferem apenas
1% em seus “gens” – ou seja, de que as raças inexistem.
Libertemos
então, dessa visão estereotipada, ultrapassada e preconceituosa,
nossos índios, caboclos e pretos velhos, permitindo-lhes trânsito
livre e que possam nos favorecer com sua sabedoria e espiritualidade.
FONTE:
Lar “Pouso da Esperança”