Naquela sexta-feira, em pleno mês de fevereiro, o sol parecia que
estava a fim de torrar, literalmente, o cérebro dos gaúchos, que tudo faziam
para escapar do efeito escaldante do verão abafado, que castigava a capital do
Sul do país.
Não havia sombra,
água gelada, sorvete ou picolé que pudesse amenizar o mal estar que se abatia
sobre a população em geral, de vez que a sensação térmica devia estar em torno
de 40 graus a sombra. Portanto, somente com um bom ar condicionado para
resolver, temporariamente, a situação.
Entretanto a fibra
dos trabalhadores daquele pequeno terreiro de umbanda, não se deixaria abater
por esta condição climática, tão comum no sul do país. Ainda mais que nesta
época do ano, a maioria das casas de umbanda, espírita, espiritualista, e por
aí vai, fecha suas portas, para férias coletivas, somente retornando em meados
de fevereiro início de março, o que provoca uma demanda maior do que a esperada
durante o ano, naqueles templos religiosos que não fecham suas portas para a
caridade.
Aliás, este costume
provoca uma reflexão que não podemos calar: “Será que os guias, mentores,
mestres da grande fraternidade branca, caboclos, pretos velhos, ciganos,
boiadeiros, exus”... Também tiram férias, compactuando ao bel prazer de seus
médiuns? Os que eles fazem neste período, se recolhem para uma colônia de
férias espiritual, no astral?
Enfim, em plena
sexta feira, a partir das 16 h, o templo, limpo, higienizado, enfeitado,
florido, se prepara para receber o público frequentador, diga-se de passagem,
os usuais mais a parcela constituída dos desgarrados de outros centros. O que
poderíamos contar em torno de 180 a 200 pessoas, amontoadas em um espaço
previsto para 120 pessoas,
confortavelmente sentadas.
Todos espremidos,
com gente pelos corredores, nos bancos externos, os trabalhadores da cantina,
esforçando-se para agradar a todos, que queriam matar a fome e mitigar a sede.
Burburinho geral.
Todo mundo com calor, suado e em busca da palavra esperançosa de uma preta ou
preto velho. Rostos contraídos pelas vicissitudes, pelas doenças dos entes
queridos, nervosos... por resolverem aqueles seus probleminhas particulares, que tão bem estas
entidades amorosas, conseguem entender e socorrer.
Pai velho,
acostumado com as lides e sofrimentos humanos, olhava com carinho para aquela
assistência agitada e do cantinho do terreiro (abaçá), sentado no chão com as
pernas cruzadas, em humilde reverência pelas dores da alma daqueles seres que
esperavam agoniados, o início dos trabalhos da noite, aguardava a chegada do
(da) médium através do qual praticava a caridade.
Os médiuns foram
chegando de suas casas, do trabalho, através do qual ganhavam o sustento de si
e de suas famílias, e após o cumprimento de suas obrigações iniciais,
acomodavam-se em seus lugares para a gira que estava por iniciar.
Após os rituais de
abertura e início dos atendimentos, passes e consultas, estava o pai velho, já
com seu (sua) médium, que suava em bicas pelo calor que fazia no salão...
Preparando-se, meditando, ambos de cabeça baixa, quando surge em sua frente uma
jovem senhora, elegantemente vestida e com ares de intensa preocupação.
Pai velho,
matreiro, conhecedor das mazelas humanas, escutou pacientemente as queixas e
rogativas da mesma. Era um rosário sem fim de meu sócio me roubou, tirou tudo
que eu tinha, fui enganada por aqueles que trabalhavam comigo, a vida tem sido
madrasta, meu companheiro me deixou, a solidão me consome, perdi tudo e... Por
aí vai.
Seguidos de tantas
perguntas, como... Estou a tantos anos esperando para iniciar novo negócio,
será que vai dar certo, vou encontrar um sócio há altura, meus filhos estão bem
em seus negócios, e a vida amorosa e profissional deles como vai, vou encontrar
outro companheiro para preencher minha solidão, vou viajar, vou conseguir o
financiamento bancário que necessito, vou trocar de casa?
As perguntas
choviam de todos os lados e com as mais variadas procedências e assuntos, ao
que pai velho escutava com respeito e carinho pela dor da filha, tentando
responder aquela enxurrada de questões, com toda a paciência, o que era quase
impossível de vez que ele emendava uma pergunta na outra, não deixando espaço
para pai velho responder.
Quando a filha
aquietou por alguns breves segundos ele disparou com doçura:
- E a fia... Pode
mi arresponde umas pregunta?
-Posso meu pai. Mas
afinal... O senhor é preto ou preta velha?
-Tanto faiz mi zi
fia...
-Ah bom! Então vou
chamar o senhor de preto velho, tá bom?
-Tá bão mi zi
fia... Mais mi arresponde...
-Quando foi a
úrtima veiz que a fia se deu uma fro, pra alegra esse coraçãozinho? Feiz um
passeio qui gosta... foi ao cinema...viajô...dançô...cantô...se deu o prazê de
faze argo pra si ?
-Fia... Qual é sua
responsabilidade cocê mema... O que será que Deus Nosso Sinhó espera da fia?
Quando pai velho
terminou de colocar a última pergunta, para reflexão da jovem senhora, ela
colocou as mãos na cintura e respondeu alto e bom som.
-Mas também... O senhor faz cada pergunta difícil
!!!... Eu hein???... ????...!!!!!!
Dito isto, a filha indignada
levantou-se, saindo apressada com olhar de incredulidade, e o pai velho amoroso
e sábio aproveitou para repassar preciosos ensinamentos ao (a) médium que
trabalhava com ele, naquele momento, porque todos os atendimentos sempre deixam
uma grande lição que necessita ser pensada, repensada e depois aplicada a vida
de cada um de nós.
A conclusão que
fica deste caso é que seres movidos meramente pelos apelos externos da
existência são iguais galhos secos levados pela correnteza da vida. A âncora
que nos faz ter alicerces emocionais para enfrentarmos nossas mazelas provindas
do mundo que nos cerca é o auto-conhecimento. Se internamente somos consciências
imaturas e deseducadas emocionalmente seremos maus pais, mães, esposos,
esposas... E teremos uma gigantesca incapacidade de olhar o outro com
assertividade genuína, empatia fraternal e apreço evangélico.
Lizete
Médium do Triângulo
da Fraternidade