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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Entre médiuns - o efeito da paixão arrebatadora e a etiologia espiritual das causas geradoras.

               
               A noite estava fria. O inverno começava a se mostrar em sua plenitude e uma névoa transformara a cidade sulina. Prestando atenção à paisagem a sua volta, com a neblina engolindo os prédios e as praças, Ana sentiu-se dentro de um conto de Sherlock Holmes. Apesar de estar acostumada, a umidade que escorria nos vidros do carro deixava tudo estranho. Lembrou-se que esquecera a sombrinha e rezou para não chover.

Ana estava se dirigindo para a Casa Espírita, como fazia semanalmente.  Frequentava a mesma há bastante tempo e participava do atendimento de emergência. Diante deles desfilavam problemas de toda ordem. Às vezes batia um desânimo tão grande, por assistir pessoas que não estavam interessadas em melhorar e buscavam somente resolverem suas pendengas de forma imediata e descompromissada. Seres que não entendem que não existe cura sem merecimento. Os problemas e as doenças fazem parte da nossa caminhada e do uso dos talentos de que fomos dotados e através dos quais deveremos encontrar as soluções e não ficar choramingando e pedindo ao Pai Maior, para resolver por nós que ficamos esperando um milagre acontecer, sem levantar um dedo sequer.

               Chegou remoendo os pensamentos e um tanto contrariada pelas condições climáticas, pelo trânsito caótico, tiritando de frio, entretanto precisava se concentrar para o trabalho da noite.  E assim fez.

               Num determinado procedimento, Ana precisou impor as mãos sobre uma mulher e suas mãos roçaram as mãos de um trabalhador do grupo. Um choque percorreu o sistema nervoso de ambos e foi explodir na cabeça. Surpresos olharam-se e não conseguiram desviar o olhar. Estavam anestesiados. Tentaram disfarçar e continuar. Foram surpreendidos com novo toque de mãos e tudo aconteceu novamente. Os demais não perceberam e ela pensou que era apenas uma pequena coincidência, fruto da imaginação. Não falaram sobre o acontecido e foram cada um para suas casas.


               Porém a cada encontro acontecia tudo de novo e cada vez mais intenso. Até que um dia ele pediu carona, pois que morava a poucas quadras da casa dela. Quando chegaram ao ponto onde ele deveria ficar, ela parou o carro e sentiu o coração acelerar, estava tensa e mais tensa ficou quando ao se despedir ele a abraçou e beijou demoradamente. Sem condições de resistir ela correspondeu.  Um fogo percorreu a ambos e daquele momento em diante não conseguiram mais ficar separados. Uma loucura. Antes ou depois dos trabalhos espirituais se encontravam e trocavam longas juras de amor intenso e insano. Telefonemas. Ficavam juntos sempre que podiam. Ela em sua total perda de discernimento rezava e pedia ao Pai Maior para que seu marido se apaixonasse pela esposa dele, pois que assim ficaria bom para todos. Esqueceu tudo que aprendeu nas lides espíritas. Que cada um é responsável por aquilo que cria e pela família que constitui. Que ninguém sai impune de seus desmandos. Que o que se planta se colhe.

               O tempo passou e ela esgotada pela intensidade daquele relacionamento e pela total incapacidade de conciliar as duas vidas que levava, começou a pensar em deixar a casa espírita, assim poderia ter mais liberdade para desfrutar de sua cega paixão. Estava resolvida e pediria o afastamento. Entretanto quando chegou do trabalho sua filhinha apresentava febre alta e não pode comparecer ao centro espírita. Postergou sua decisão em favor dos cuidados que a menina necessitava. Passou uma semana afastada de seu grande amor. Teve sonhos pesados, estranhos, turbulentos, onde se via perseguida e chamava por ele que não aparecia. Acordava suada, com grande mal estar. Não conseguiu falar com ele nas semanas seguintes. O desespero começou a brotar em seu coração. Uma amargura acompanhada de tamanha tristeza que não conseguia respirar.  Doía tudo. Mal conseguia levantar da cama no dia seguinte para trabalhar e cumprir com seus afazeres. Já faziam dois meses que não se encontravam. Pensou que ia morrer de tanta dor e saudade. Resolveu sair do trabalho mais cedo e procura-lo. Estava precisando muito sentir sua presença. E assim fez. Esperou um bom tempo. Ele não apareceu. Encontrou um colega de trabalho que saía e perguntou por ele. Ouviu o seguinte:

- Ha!  Você não soube? A esposa dele teve um bebê prematuro e ambos estão preocupadíssimos e muito ocupados. Inclusive, ele pediu transferência para Recife, porque a criança tem problemas respiratórios sérios e ambos desejam para ela um clima mais saudável. Até já mudaram.

               Ana perdeu os sentidos. Quando acordou não sabia onde estava. Custou a identificar o lugar. Reconheceu o marido e a filha. Estava esgotada e sem forças. O tratamento foi iniciado. Terapeutas, psicólogos e na casa espírita. Recusava-se, porém a falar nas causas que deixaram profundas feridas em sua alma. Uma noite enquanto recebia atendimento, apresentou-se um amigo espiritual que a reconfortou e explicou o porquê de tamanha provação.    Mostrou a ela um passado distante, onde muito rica e requisitada, por ser portadora de grande beleza, fazia gato e sapato dos seus apaixonados, trocando-os como quem troca de roupa, por puro prazer. E assim agindo desfez o lar de uma prima porque não aceitava ser posta de lado. Tão logo o moço apaixonou-se por ela trocou-o por outro, deixando-o a mercê da própria sorte e o lar da prima destroçado. Partiu em viagem para não acompanhar o desfecho trágico do caso.

               Como a vida não deixa nada pendente e vamos colher o que plantamos, Ana antes de reencarnar escolheu passar pela mesma prova, para aprender e valorizar as pessoas que estavam ao seu lado. A filhinha era a prima de seu passado e para a qual deveria dedicar seu amor. O amante abandonado de outrora era hoje o seu marido. Entre os pretendentes a quem abandonara por puro capricho, um era o amante atual e outro o filho prematuro do mesmo.

               Pela misericórdia divina, ao entrarmos na matéria para novas reencarnações, esquecemos o passado delituoso. Porém tão logo tenhamos chance passamos a tentar manipular tudo ao nosso jeito e conveniências, a nos exclamar quando algo dá errado, porque não conseguimos pôr em prática nossas ideias inconformistas ante os desígnios divinos que colocam em nossa estrada alguns percalços para nos manter na linha. Mas nós doentes da alma, trazemos gravados em nossos centros de memória eterna, todos os nossos deslizes que vão desfilando em nossa caminhada para serem corrigidos e reparados. Misericórdia divina. Pura misericórdia divina. Dá-nos incontáveis chances de reparar nossas faltas. De escolher o caminho do amor que é a moeda mágica através da qual pagamos nossos erros e desacertos.


Lizete Iria

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