O cavalo de Solimar estava
quieto, esperando que ela indicasse a direção que deveria seguir. Chamava-se
Ventania por ter crinas brancas que lembravam nuvens de algodão que revoavam enquanto
cavalgava. Moravam no interior do Rio Grande do Sul e a fazenda ficava há
alguns quilômetros da cidade de Passo Fundo. A família gostava das lides campeiras e
passavam a maior parte do ano por lá. Após desfrutar da paisagem por longo
tempo Solimar distraidamente, com os pensamentos fervilhando, tomou o rumo que
levava a uma colina, coberta de mato nativo, tendo bem ao centro uma cabana
abandonada. Como aquele lugar era alto e ao redor da mesma havia um bambuzal,
plantado por não se base quem, apresentava um aspecto sombrio talvez pela
combinação inusitada de verde com o vento constante, balançando as folhas sem
parar. Os mais velhos quando se referiam ao local diziam: - Lá onde os ventos
dobram e as borboletas dançam! Era o suficiente para manter as crianças
afastadas, espiando de longe. E advertiam: - Quem se aventurar vai ficar preso
lá dentro. E tem mais, em noites de lua cheia ouvem-se lamentos entrecortados
de soluços.
Assim ninguém era doido
suficiente para passar por lá, principalmente em noites de lua cheia. Comentavam
que tinham visto luz de velas dentro da cabana. Que os animais não pastavam
naquele local e nem os cães subiam a colina. Uma aura de mistério envolvia o
lugar e o silencio era tanto que doía na alma daqueles que se arriscavam.
Entrava no coração e a tristeza fazia morada, restando apenas ao sujeito fazer
novenas sem fim, para livrar-se de tamanha angústia.
Distraída Solimar começou a se
aproximar e Ventania estancou relinchando, batendo os cascos dianteiros no
chão, inquieto, querendo sair dali. Ela olhou hipnotizada, lembrando-se das histórias de sua infância e
com o coração batendo acelerado. Seria realmente verdade? Tantas vezes espiara da
varanda em noites de lua cheia, para ver a dança das borboletas, mas somente
escutava o barulho do vento no bambuzal e a avó dizendo que não era bom espiar,
pegando a mão dela e levando-a ao quarto para dormir. Ela passava a noite
acordada ouvindo os sons trazidos pelo vento.
Pensando em apear do cavalo para
olhar de perto a cabana das suas memórias infantis, prendeu o pé no estribo e
caiu, machucando o tornozelo. Desatinada de dor, sem ter como andar, chamou
Ventania e se atirou por cima do animal, que atendendo ao apelo da dona, voltou
vagarosamente para a casa. Solimar olhou para o lado da cabana e divisou na
esquina onde os ventos dobram pequeninas borboletas, com suas asas
transparentes, dançando e cantando. Forçou a visão, mas a dor a fez perder o
foco e os sentidos. Acordou com mãos
tirando-a do cavalo e levando para dentro de casa. Falavam todos ao mesmo
tempo. Queriam saber onde andara. Eram perguntas que ela não tinha condições de
responder, estava tonta e não lembrava muito bem o que acontecera. Precisou ficar
deitada por uns dias, sem poder andar, nem cavalgar que era sua paixão.
Recostada nos travesseiros,
conversava com a empregada mais antiga da casa, quando Ventania se aproximou da
janela e num relincho suave, colocou o focinho para dentro, para ser afagado
pela dona. Ela acariciava o animal quando teve sua atenção voltada para algo
que se grudara em suas crinas. Viu uma estranha asa cintilante, transparente,
com as cores do arco-íris. Tão sedosa e macia que não conhecia nada parecido. Olhou
instintivamente pela janela e divisou ao longe a cabana no alto da colina. Será
que era a asa de uma borboletinha dançarina? Acontecera ou não passara de um
sonho? Em seus ouvidos ecoavam acordes musicais de uma canção desconhecida,
misturados aos sons do vento ao passar pelo bambuzal. Olhou para onde Mãe Mima
estivera sentada e não a viu.
Tomada de curiosidade pela asa minúscula que tinha em suas mãos, num
esforço supremo, levantou da cama, saiu pela porta da sacada que havia no
quarto e montou em Ventania. O cavalo
trotou suavemente, subindo a colina com cuidado. Pararam alguns metros a frente
da porta de entrada, então Solimar olhou a
sua volta e notou algo diferente. A cabana parecia nova, as janelas e
portas que estavam caindo tinham sido recuperadas, cortinas creme e ao olhar
para o telhado, percebeu fumaça saindo pela chaminé. Enquanto tentava entender
a modificação da paisagem, seus ouvidos atentos escutaram a suave melodia,
trazida pelo vento, tirando sons do arvoredo. A porta da cabana abriu e Mãe
Mima apareceu na soleira, acenou chamando-a, alegre pela sua chegada. Ela
correu e se atirou nos braços daquela que havia cuidado dela desde seu
nascimento. Entrou na pequena sala e viu antigos empregados da fazenda.
Estranhou, pois sabia que todos estavam mortos há mais de dois séculos. O que
estava acontecendo? Confusa virou-se para a avó e viu-se no espelho da sala,
com uma roupa de época que gostava de usar nas festas da sociedade local. Olhou
incrédula para Mãe Mima e para a avó e as duas a enlaçaram carinhosamente,
fazendo-a sentar-se entre elas e contaram então a história de sua vida.
Enquanto elas falavam, um filme passou ante seus olhos e reviu as cenas, toda a
dor e o sofrimento de seu desencarne na flor da juventude, devido a uma forte
pneumonia, contraída por cavalgar no inverno em dias de chuva. Sentiu todo o desespero da família, na
tentativa de salvá-la junto com a dedicação do médico que passara dias lutando
para resgatá-la das garras da morte. Fora naquela cabana que ela cansou de
lutar com seu corpo doente dando seus últimos suspiros. Como uma flor foi
colhida em sua beleza plena e com casamento marcado. Deixou os pais, o noivo a
quem amava com todas as suas forças e os empregados que considerava parte de
sua família, órfãos de sua companhia. E não tendo aceitado a morte prematura
continuou a vagar por ali. Haviam se passado dois séculos e os antigos
moradores da fazenda que tinham por ela carinho genuíno, após o desencarne ficaram
por perto para protegê-la e ampará-la. Ela ficara na casa grande e com a
partida de todos seus entes queridos olhava pela janela e via a casinha da
colina, porém não tinha coragem de se aproximar. Mãe Mima então junto com os
amigos espirituais que ajudavam em seu despertamento, lançaram mão das
lembranças infantis porque sabiam que assim despertariam a sua curiosidade.
Atraída pelos mistérios das histórias que sua avó contava criou coragem para se
aproximar e compreendeu que já não fazia parte deste mundo material. Foi
acolhida e encaminhada para um hospital no astral, pois necessitava recuperar
suas energias combalidas durante tanto tempo na erraticidade vagando e refazer
seus corpos, estudando e trabalhando para dar continuidade a sua caminhada
evolutiva. De vez que no mundo astral todos interessados em progredir se ocupam
com atividades úteis, tanto para si como em benefício de outros mais
necessitados e menos esclarecidos. A vida seja em que plano for é repleta de oportunidades,
basta querer e ter boa vontade em fazer algo, por mais simples que possa
parecer, nos tirando da inércia de esperar que milagres aconteçam.
Depois de um tempo em recuperação
e preparação na colônia astralina a que fora recolhida, recebeu a notícia que
se aproximava a hora de um novo estágio na matéria, para colocar em prática o
que aprendera. Inicialmente ficou apreensiva, porém acalmou-se quando teve a
confirmação de que seus amigos estariam com ela, mesmo não sabendo quais
seriam. Dias mais tarde foi atraída
irresistivelmente para um lugar estreito e escuro, de uma suavidade e aconchego
sem igual. Sentia ondas de carinho que atravessavam aquelas barreiras e
confortavam seu coração. Ouvia vozes amorosas que entoavam melodias singelas e
carregadas de bons sentimentos. Esperou com ansiedade até que se viu
transportada por um túnel apertado e o medo a sufocou, começou a gritar e
debater-se até que olhou para o lado e reconheceu, ali bem pertinho, chorando
de emoção o seu grande amor que aceitara reencarnar e recebe-la como filha,
estendendo os braços carinhosamente. Reconheceu Mãe Mima de cujo ventre estava
saindo para a vida. Entregou-se ao abraço amoroso daqueles a quem amava e
reunindo todas suas forças estancou o choro e fez uma careta, retorceu a boca
pequenina, confiante e feliz, adormecendo tranquila, no regaço macio e
quentinho de sua mãe, ante o olhar emocionado do pai.
A vida em sua evolução constante
à qual todos os seres estão fadados, seja de forma rápida ou mais lenta,
conforme os desejos e necessidades de cada um se encarrega de colocar na mesma
rota todos aqueles, que necessitam aprender juntos, seja lá o que for que
tenham escolhido para si. Amor, dor, desunião, ciúmes, inveja, compartilhamento
ou ajuda mútua. As escolhas são infinitas, as possibilidades maiores ainda e
muitas as moradas do Pai, porque por necessidade nossa, podemos seguir para
qualquer uma delas, onde se faça necessário a nossa colaboração, tendo por
finalidade nos melhorarmos e ajudar a alavancar o progresso daqueles que
estiverem por perto.
Lizete
Iria