Vivi
passou o dia com a música de Roberto Carlos, ressoando nos seus ouvidos, sempre
o mesmo refrão “de que vale tudo isso... se você não está aqui?” Parecia um
disco arranhado. Algumas frases alternadas, soltas, mas insuficientes para
completar versos. As horas se arrastavam,
com reuniões, metas e mais metas a cumprir, cifras, chefias. E frases soltas...
“meu amor”... “não falo com”... Esgotada, parecia que a bateria de uma escola
de samba, ensaiava em seus ouvidos. Estava tão aturdida que resolveu sair mais
cedo do trabalho e voltar para casa, não tinha condições de falar com mais
ninguém. Visitas foram remarcadas e assim teriam tempo de revisar os novos
projetos, acrescentando dados das pesquisas refeitas. Afinal o que eram algumas
horas a mais nos negócios, se sua saúde estava abalada? Precisava urgente de
cuidados e um comprimido para acabar com a dor de cabeça que estava prestes a
explodir deixando-a estonteada, com luzes aparecendo e desaparecendo e o
estômago dando voltas. ... “deixa triste”... “pensando”... Pior do que todo desconforto nas crises de
enxaqueca era o sentimento de vazio e solidão que brotava do nada, imperioso e
impertinente, mesmo estando rodeada de pessoas, era como estar só no meio da
multidão. Queria se trancar no quarto, para não deixar a luz entrar e não ouvir
qualquer espécie de barulho ou voz. ...“amor
que é puro”... Santo
Deus! Que dia!
Quanto mais cedo voltar
para casa melhor. Morava sozinha, daí a vantagem de não dar explicações para
ninguém. Seria mesmo uma vantagem? ...“eu não falo com você”... “sou capaz de
enlouquecer”... Telefonar para os pais era o mesmo que lançar um SOS
tridimensional no espaço e em segundos a família corria para lá acampando na
sala. Restava o silêncio e nenhum pedido
de ajuda. Chegou em casa, tomou uma ducha demorada, um chá morno para acalmar
os nervos e um comprimido para enxaqueca, caindo direto na cama. Único modo de sobreviver no
estado em que se encontrava e um soninho debaixo das cobertas, tapada até a
cabeça sempre vinha bem porque acordava revigorada. Quando estava adormecendo,
lembrou ter visto na entrada do prédio um senhor de terno escuro que não
parecia com nenhum dos moradores, o edifício era pequeno e conhecia os vizinhos
socialmente. Devido à pressa, não deu muita importância. Já o tinha visto em
algum lugar, o rosto era familiar. A imagem fugiu e ressoou em sua mente quase apagada...
“é demais qualquer minuto sem você”... Adormeceu e teve sonhos confusos.
Viu-se
em uma praia banhada pelo luar e as pessoas que estavam por ali a
cumprimentavam sorrindo, entretanto não se lembrava de ninguém, nenhum rosto
conhecido. Reparou que vestiam trajes a rigor, roupas pretas,
bonitas e quando olhou para si notou que também estava vestida do mesmo modo.
Deveria estar de pijama pensou, estou dormindo, o que faço aqui? Tão logo emitiu o pensamento surgiu a sua
frente o senhor que vira à tardinha na entrada do prédio, sorrindo tomou sua
mão e a conduziu para um grupo reunido perto deles. Foi apresentada e logo estavam
conversando e saboreando um vinho frisante de sabor inigualável, quando iniciou
um rumor na multidão e alguém falou: - Ele chegou pessoal! Assim que se virou
para ver quem era, divisou em homem elegante, belo, de feições marcantes, ficou
olhando ele se aproximar e tomar sua mão. Um choque percorreu todo seu corpo,
com tamanha intensidade que teve a sensação de cair de um penhasco muito alto. Sentiu um puxão e um forte ardor na nuca,
acordou molhada de suor, chorando e sentindo nas mãos um suave perfume. Escutou
quase num sussurro... “suportar eu não... tanto tempo sem te ver”...
Saltou
da cama, a dor passara e Vivi resolveu procurar Pai Tião na caridade
umbandista, para esclarecer algumas coisas, aprender sobre mediunidade. Aceitou
o convite do diretor da casa e passaria a frequentar os estudos e as sessões de
caridade, porque era a única maneira de entender o que estava acontecendo.
Ficaria para o atendimento da noite, com palestras e passes. Quando retornava
do templo escutou... “é demais qualquer minuto sem você”... Percebeu no ar o
mesmo aroma do sonho. Estava serena e seguia tranquila com a decisão tomada. A
seu lado sem que percebesse caminhava um homem elegante, vestindo capa preta e carregando
um cajado. Seu amor de outrora, hoje um guardião, um valoroso Exu, dedicado
trabalhador dos exércitos da luz, que imprimia em sua aparência a bondade ou a
austeridade necessária aos tipos de tarefas que desempenhava. Esperava
pacientemente que Vivi se desenvolvesse como médium umbandista, para juntos
trabalharem pela evolução e consolação da humanidade. Ele nas falanges de Exu,
ela no plano material, estudando e praticando o autoconhecimento, ligados pelo
amor que faz com que laços verdadeiros não se rompam. Ambos em perfeita
sintonia pelos diferentes caminhos que o Pai traça para cada um.
Laroyê Exu!
Lirializ