Última entrevista de Huberto Rohden, antes de sua desencarnação, concedida ao jornalista José Ítalo Stelle, publicada na revista Visão de 9 de fevereiro de 1981.
A EDUCAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
"A instrução ensina o homem a descobrir as leis da natureza, isto é, a ciência; mas a educação leva o homem a criar valores dentro de si mesmo", diz o filósofo brasileiro Huberto Rohden nesta entrevista à VISÃO.
"Não existe crise de educação no Brasil, nem em qualquer parte do globo. O que existe é uma deplorável ausência de verdadeira educação". Esta é a opinião do filósofo brasileiro Huberto Rohden a respeito da chamada crise da educação moderna. Rohden explica: "Não estou usando a palavra educação no sentido popular, referindo-me a graus de instrução. Uso a palavra educar no sentido rigorosamente etimológico e verdadeiro “eduzir”, indicando que o educador deve eduzir, desenvolver e manifestar o que já existe na natureza do educando". É esta razão de que, no modo de ver do professor Rohden, “uma filosofia ou uma teologia que admita de antemão que o homem seja mau por natureza não pode falar em eduzir; só poderia tratar de impingir ao educando algo alheio à sua natureza. Mas isso é o contrário à educação.”
Como Sócrates, Platão e os Estóicos, Rohden acredita que a boa ordem social não pode ser criada com estratagemas políticos. A boa ordem social não tem origem na política, mas na ética que ordena a consciência dos cidadãos e dos líderes da sociedade: ela se projeta na sociedade, mas está radicada no indivíduo. Nascido em Tubarão, estado de Santa Catarina, Rohden formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia nas Universidades de Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De 1945 a 1946, teve uma bolsa de estudos para o desenvolvimento de pesquisas científicas na Universidade de Princeton, Estados Unidos, onde teve a oportunidade de conviver com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito internacional da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio universo. Em 1952, fundou em São Paulo o Centro de Auto-Realização Alvorada, que mantém cursos permanentes sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. É autor de mais de 60 livros, entre os quais estão Porque Sofremos, O Caminho da Felicidade, Mahatma Gandhi, Lúcifer e Logos, O Homem, Einstein - O Enigma do Universo e Educação do Homem Integral. Alto, cabelos brancos, roupas simples, mente aguçada, o professor Rohden concedeu à VISÃO a seguinte entrevista na sede do Centro de Auto-Realização Alvorada, na Rua Alegrete, 72, Sumaré, São Paulo.
VISÃO - O senhor tem dedicado boa parte do seu tempo aqui na Alvorada, enfatizando a diferença entre a instrução e a educação.
VISÃO - O senhor tem dedicado boa parte do seu tempo aqui na Alvorada, enfatizando a diferença entre a instrução e a educação.
HUBERTO ROHDEN - Não, não é bem isso. Tenho falado unicamente sobre autoconhecimento e auto-realização da natureza humana. Isso inclui tudo e vai muito além da educação. Nós temos que nos realizar. Somos embrionários; "sementes" humanas. Falando simbolicamente, temos que realizar a nossa "semente" humana em forma de uma perfeita "planta" humana. Portanto, no Centro Auto-Realização Alvorada, cuidamos do autoconhecimento da natureza humana e sua auto-realização na vida prática. Temos que saber o que somos e temos de viver de acordo com aquilo que somos. O homem deve realizar-se. Ele não é realizado; é apenas realizável. Da auto-realização fazem parte duas coisas: tanto a instrução na ciência como a educação da consciência. O Governo só pode instruir na ciência; não pode educar na consciência. A educação da consciência é do foro íntimo do indivíduo. Temos um Ministério da Instrução; não temos um Ministério da Educação. Não existe nenhum ministério da educação em nenhum país; nem pode existir. Não devemos confundir instrução com educação. A educação é muito mais profunda do que a instrução. A instrução é da inteligência; a educação é da consciência. A instrução faz o homem erudito; a educação faz o homem bom. Ambas são necessárias mas a mais importante é a educação da consciência.
VISÃO - Então, ao contrário do que se supõe hoje em dia, a educação é uma atividade individual?
ROHDEN - É eminentemente individual. Não pode ser uma atividade social. Ela se reflete na sociedade, mas está radicada no indivíduo. Só existe auto-educação; não existe alo-educação (educação de fora para dentro). Ou o homem se educa ou não se educa. Outros não podem educar-me; só podem mostrar-me o caminho pelo qual eu me possa educar.
VISÃO - Essa é, então, a função do mestre – mostrar?
ROHDEN - Sim. O mestre é um guia. O educador pode mostrar ao educando o caminho por onde o educando se pode auto-educar. Há muita confusão hoje em dia sobre a educação. Entre centenas de livros sobre a educação, mal encontrei um que possa aprovar integralmente. Alguns têm coisas boas, mas não frisam a coisa essencial que é a auto-educação.
VISÃO - Falou-se recentemente que o sistema educacional brasileiro estava em crise. O senhor concorda que esteja?
ROHDEN - Crise supõe uma presença. Não existe nenhuma crise; o que existe é uma deplorável ausência de verdadeira educação.
VISÃO - De onde surgiu essa ausência de educação?
ROHDEN - Ela resulta do fato histórico de que a nossa evolução humana no mundo inteiro não está na altura. Não estamos na era da incerteza, da qual falou o economista John Kenneth Galbraith; estamos, sim, em estado permanente de incerteza, porque a humanidade está marcando passo na inteligência e não atingiu ainda o nível da razão, da consciência. Falta-nos uma disciplina ética avançada. Albert Einstein, que era um grande luminar, disse: "O descobrimento das leis da natureza - a ciência - torna o homem erudito; mas não torna o homem bom. O homem bom é aquele que realiza os valores que estão dentro de sua consciência. Do mundo dos fatos, que é a ciência, não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, que é a consciência. Fatos não produzem valores, porque os valores vêm de outra região." Teilhard de Chardin disse: "O homem veio da biosfera. Está na noosfera (noos quer dizer inteligência, em grego) e age em função da noosfera. Viemos da biosfera, isto é, da esfera da vida. Nós nos intelectualizamos há milhares de anos; viemos da biosfera para a noosfera. Passamos da esfera da vida para a esfera da inteligência - e cá estamos. Acima da noosfera está a logosfera, a esfera da consciência; mas ainda não estamos lá.
VISÃO - Não há alguns indivíduos que estão acima do grosso da humanidade?
ROHDEN - É claro. Há indivíduos isolados, esporádicos, que estão na esfera da educação da consciência. Mas a maioria não está lá. É uma questão de evolução da humanidade. A culpa não é do Brasil, nem de ninguém. É da falta de evolução superior da humanidade. Na esfera em que estamos não podemos ter educação; só podemos fazer instrução. Todos os crimes e terrorismos vêm daí. A ciência não pode abolir o terrorismo; só a consciência pode fazê-lo. Já se foi o tempo em que se dizia ingenuamente: "Abrir uma escola é fechar uma cadeia". A experiência prova que os grandes malfeitores da humanidade não foram analfabetos, mas, sim, homens que não educaram a consciência.
VISÃO – E as Igrejas, não favorecem a educação? Não é, essa, parte da sua razão se ser?
ROHDEN - A teologia da Igreja ensina que melhor que viver corretamente é morrer corretamente. Se um homem vive cinqüenta anos matando, roubando, defraudando e, nos últimos cinco minutos, se confessa e se converte, vai para a vida eterna. Isso é um convite antipedagógico, um convite tácito para uma vida má, contanto que haja morte boa. As teologias são tacitamente contrárias à educação da consciência. É uma denúncia que eu faço em base real. Simples moralidade não é educação.
VISÃO - Mas as Igrejas não pregam a ética do Evangelho?
ROHDEN - Não. Substituíram o Evangelho pela teologia. O Evangelho exige uma vida honesta do princípio ao fim. Mas as Igrejas pregam que basta converter-se na última hora. E tentam consertar seu erro com uma falsa interpretação das palavras de Jesus ao ladrão na cruz.
VISÃO - Além da teologia, há na sua opinião, outras filosofias contrárias à educação operando nos chamados meios educacionais.
ROHDEN - Os "meios educacionais" estão cheios dessas filosofias. Veja o behaviorismo de B.F. Skinner. Ele diz: "a liberdade é um mito. O livre-arbítrio não existe." É uma filosofia que diz que somos autômatos, que somos condicionados pelo meio-ambiente. Ora, se não há livre-arbítrio, então não há base para a educação. O homem tem a alternativa de ser bom ou mau; isto é, a possibilidade de auto-educação. Mas se o homem é obrigado pelas circunstâncias a ser mau, ou a ser bom, então acabou-se toda a base para a educação. Não negamos que as circunstâncias possam dificultar o exercício do livre-arbítrio; negamos que o homem normal possa ser obrigado pelas circunstâncias a ser bom ou mau.
VISÃO - O vazio moral, a angústia existencial que muitos parecem sentir hoje em dia e que é constantemente representada na arte moderna - pintura, teatro, literatura, cinema, televisão, etc. - de onde vêm?
ROHDEN- Vêm da falta de autoconhecimento e da falta de verdadeira educação. Esses fatores sociais - rádio, teatro, televisão, etc. - não podem educar porque, como já foi dito, a educação é um processo eminentemente individual. O que os citados fatores sociais poderiam e deveriam fazer é remover ou diminuir os obstáculos à verdadeira educação. Infelizmente, porém, quase todos os programas de cinema, rádio, televisão são flagrantemente antieducativos. E isso acaba num vácuo ou numa frustração existencial, como repetirmos sem cessar em nossos cursos da Alvorada e em nossos livros.
VISÃO - Qual a relação entre a natureza humana e a auto-educação?
ROHDEN - A auto-educação é a perfeita evolução da natureza integral do homem. Não é algo alheio introduzido nela; é o conteúdo interno da própria natureza, eduzido e manifestado na vida externa, individual e social. O homem profano, sem auto-compreensão, abusa de tudo, inclusive de si mesmo, a fim de ter momentos de prazer superficial. Por outro lado, o homem místico isolacionista se recusa a usar qualquer objeto; simplesmente recusa tudo. Mas o homem cósmico, o auto-educado e auto-realizado, usa de tudo sem abusar de nada. E isto é verdadeira educação. O educador deve mostrar ao educando que quer ser fiel à sua própria natureza é ser feliz, embora essa felicidade nem sempre esteja livre de sofrimento. Enquanto o educando confundir felicidade com gozo, ou infelicidade com sofrimento, não tem o caminho aberto para a verdadeira educação. O homem auto-educando pode ser feliz no meio de sofrimentos e pode também ser infeliz no meio de gozos. A base da auto-educação é autoconhecimento, como já diziam os filósofos gregos: "Conhece-te a ti mesmo."
VISÃO- Haverá no mundo moderno um movimento de auto-educação?
ROHDEN- Felizmente há, em todos os países, pequenos grupos que levam a sério a auto-educação. Conheço de convivência o movimento Neugeist (Novo Espírito), nos países germânicos; bem como a Self-realization (Auto-Realização), nos países anglo-saxônicos, que, na Inglaterra, também é conhecida como The New Outlook (A Nova Perspectiva). Esses movimentos são representados no Brasil pelo Centro de Auto-Realização Alvorada. São iniciativas particulares de pequenas elites que tomam a sério a sua auto-realização, baseada no autoconhecimento da natureza humana e manifestada na vivência ética da vida diária, individual e social. Felizmente, o maior dos educadores disse, há quase 2.000 anos: "O Reino dos Céus está dentro de vós, mas é ainda um tesouro oculto, que deveis descobrir." Com isso o Nazareno afirma a presença de um elemento bom no homem e a necessidade que ele tem de revelar na vida diária esse tesouro oculto. Isto é pura auto-educação.