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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Cinquenta Ave-Marias

Jully acordou indisposta e com uma dorzinha de cabeça ingrata, lembrando que mais uma noite fora desperdiçada e que o sono não fora reparador.  Desde que se conhecia por gente recordava da constância da nuca a latejar pela manhã. Tinha algo a ver com sonhos confusos e números que não tinham significado aparente. Esforçava-se por lembrar, mas tão logo levantava da cama para ir a banheiro ou iniciar os preparativos para o novo dia o sonho se evaporava instantaneamente e só restava a nuca dolorida. 
Jovem mulher beirando os 27 anos, trabalhava numa empresa de importação e exportação, tendo galgado promoções pela sua competência e esforço em melhorar a cada dia, buscando sempre novos conhecimentos em sua área de atuação. Admirada pelos colegas e bem quista pela diretoria, trajava-se com simplicidade total, muitas vezes recebendo dicas de suas amigas para se arrumar melhor em virtude do cargo que ocupava. Mas que nada, ela não arredava pé, mesmo tendo recursos mais que suficientes para andar de acordo com as tendências da moda. Poderia ser discreta e elegante diziam-lhe, mas ela sorria e mudava de assunto. Até já pensara em mudar, mas na hora H, voltava atrás.
        Jully saiu de casa aos 20 anos, para ficar mais perto do serviço, no centro de uma grande cidade, porque a casa paterna ficava num subúrbio e ela perdia muito tempo da casa para o trabalho, do trabalho para a faculdade, da faculdade para casa. O dia passava tão rápido que não sobrava tempo para nada. Então num esforço que lhe custou muitas lágrimas, chantagens emocionais e um discurso de arrasar qualquer um, saiu de casa deixando os pais chocados. A coisa foi tão traumática que o pai, um crente extremamente conservador gritou que se ela deixasse a casa paterna seria esquecida. Que mulher que morava sozinha não era boa coisa. Acabou a conversa com um sonoro tabefe e trancou-se no quarto chamando a mulher. Sem alternativa, a coitada da mãe foi praticamente arrastada aos prantos, porque seu coração não concordava com as opiniões rígidas do marido. Amava as filhas, mas não tinha voz ativa na casa sendo totalmente tolhida em suas ações pelo companheiro temente a Deus e frequentador assíduo da igreja.  Estava escrito na Bíblia, o pastor falou, tá falado, não tem mais discussão. Só resta fazer.
A vida seguiu seu curso e aquela executiva carregava uma tristeza grande em seu peito porque a dor ainda não estava curada, a saudade da mãe e das irmãs era grande e apertava o coração com intensidade. Já fizera várias tentativas, mas não conseguia se aproximar delas. O pai parecia um cão de guarda impedindo qualquer contato. E enquanto pensava sobre isto, naquela manhã em que tentava lembrar-se do sonho, recebeu um chamado da Supervisora Geral da empresa. Precisava lhe falar urgente. Tinha uma excelente notícia para ela.   Atendeu ao chamado e ouviu com preocupação. Fora escolhida para representar a empresa na assinatura de um contrato milionário com um país europeu. Deveria arrumar as malas e partir, porém... precisava urgente renovar o visual, repaginar, tomar banho de loja e salão de beleza, maquiar-se, pintar as unhas, dar um visual moderno, tratar os cabelos. Afinal o que precisava? Seu salário não cobria suas despesas? Então receberia uma verba para tal. Mas em dois dias precisava reformar total. Dito isto saiu e a deixou perplexa. Sem saber o que fazer. Faltou o ar, sentiu-se asfixiada. Não conseguia respirar. Começou a suar. Perdeu os sentidos. Foi socorrida pela secretária que ouviu o barulho. Passou muito mal. Precisou de tratamento, buscou ajuda. Fez descobertas importantes. Compreendeu o significado dos sonhos. Viu-se pequena, aos cincos anos, brincando com as irmãs, sob o olhar amoroso da mãe, mais as amiguinhas. Estavam pintando as unhas com esmalte vermelho, haviam passado batom, colocaram acessórios das mães, arrumaram os cabelos umas das outras. Felizes. Crianças brincando em harmonia. Inocentes. Eis que no meio da brincadeira, um grito. Tão alto e furioso que ficaram paralisadas. O que seria? Logo souberam. O pai de Jully chegou naquele instante e viu as meninas brincando. Gritou o mais alto que seus pulmões aguentaram e as cordas vocais permitiram. 
       - O que está acontecendo aqui? – Mulher você as deixou brincarem de quenga? Mulher que pinta as unhas de vermelho e usa batom vermelho é da vida! E dito isto pegou a mulher pelos cabelos, arrastou pra dentro. Pegou as filhas também pelos cabelos e aplicou uma surra exemplar nelas, para nunca mais esquecerem. Feriu a carne e o coração daquelas mulheres. Depois de exausto de tanto bater gritava. -E agora rezem juntas, cinquenta Ave-marias, pra nunca mais esquecer. Uma! Duas! Três... Elas choravam tanto, que se afogavam nos soluços. Não conseguiam rezar. E ele só parou quando a mulher exausta desmaiou.
Tudo veio a memoria de Jullly. A vergonha, a aversão pelo pai, a inocência aviltada com um ato tão brutal. O trauma. Que repercutiu na vida adulta com tanta intensidade que ela não se permitia vestir e tratar-se com elegância. Reuniu todas as forças que possuía. Haveria de superar. Tomou um banho de loja. Incialmente discreto. Ajeitou-se. Era linda e ficou mais linda. Viajou como representante da empresa. Obteve sucesso. Teve seu trabalho reconhecido. Cresceu ainda mais aos olhos dos seus empregadores. Porém ainda tinha uma mágoa no coração. Mas estava se preparando para o perdão, após compreender a vida dura do pai, criado numa família repressora e sem amor. Talvez demorasse, mas faria um esforço. Pela mãe e pelas irmãs que tanto amava. Buscaria ajuda-las a descobrir um novo mundo e outro modo diferente de enxergar a vida. Ensinaria a elas o que aprendera. Que Deus é alegria, abundância e prosperidade. Que Jesus desceu do madeiro há muito tempo e hoje abre os braços para nos receber. Simples assim. Sem cobrança. Sem castigo. Somente amor. Basta sermos do bem. Porque se optarmos pelo mal, seremos matriculados na escola da vida. E em tal escola as lições devem ser bem compreendidas. Caso contrário repete-se o curso. Ano após ano. 

Lizete Iria

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